A obra de Milton Nascimento é uma aula de história do Brasil e eu posso provar. Quando Milton Nascimento cantou “nada será como antes”, talvez não soubesse que estava escrevendo, sem querer, uma das mais tristes ironias brasileiras. Décadas depois, o tempo cumpriu a profecia: o país mudou, se reinventou e, tantas vezes, se esqueceu de quem é. Por isso, hoje eu escolhi 3 canções de Milton Nascimento para conhecer mais o Brasil.

Milton Nascimento aparece sorridente com um girassol nas mãos
As canções de Milton Nascimento ajudam a contar a história do Brasil (Foto: Billboard Brasil)

Recentemente, Milton foi diagnosticado com demência por corpos de Lewy, uma condição que apaga lembranças, embaralha o tempo e transforma o que era memória em névoa. É doloroso pensar que aquele que nos ensinou a sentir o Brasil possa, aos poucos, deixar de reconhecê-lo. Mas talvez haja uma beleza triste nisso: mesmo que a memória de Milton se fragmente, a memória do Brasil continua escrita em sua voz.

Nada Será Como Antes, amanhã?

Milton nasceu em 26 de outubro de 1942, ano em que o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial e vivia uma ditadura que tinha Getúlio Vargas como chefe de Estado. 22 anos depois, em 1964, o Brasil sofreu outro golpe de Estado. Mas isso nem era novidade, desde a proclamação da República, em 1889, que também foi um golpe de Estado, até 1964, o Brasil sofreu quatro golpes reconhecidos pela historiografia política. E para começar a seleção das 3 canções de Milton Nascimento para conhecer mais o Brasil, “Nada Será Como Antes”. Em 1972, Milton Nascimento, juntamente com seus amigos do Clube da Esquina, cantavam com esperança que “nada será como antes, amanhã”. Aqui estamos nós em 2025. Será que tudo mudou realmente?

Cio da Terra, a propícia estação

A história do Brasil é uma história agrária. Antes de ser República, antes de ser Industrial, antes mesmo de ser Brasil, nós já éramos terra. Uma terra que até hoje deixa as grandes potências de queixo caído, tamanha a riqueza que aqui floresce como se ela realmente tivesse algo de especial. As terras do nordeste brasileiro, que já foram das terras mais férteis deste país, cederam à seca e à erosão pela ganância da monocultura. E essa terra é do povo. Do trabalho. Mas hoje está presa numa estrutura fundiária que nasceu da desigualdade. Uma elite agrária que moldou o país à sua imagem sustentada pelo trabalho escravizado e pela exclusão de povos originários e camponeses. A história dessa terra e o trabalho foi capturada nesta composição de Milton Nascimento e Chico Buarque de Holanda: Cio da Terra.

Não esqueça, amigo, eu vou voltar

E para fechar as três canções de Milton Nascimento para conhecer mais sobre o Brasil, uma canção, das mais antigas de Milton, que descreve esse Brasil de maneira impressionante, é Morro Velho. Essa é uma dessas canções que não envelhecem. Porque o Brasil que ela canta continua aí. É a história do filho de branco e do preto, correndo pela estrada atrás de passarinho, mas depois separados pelo destino traçado pela desigualdade. É a história de quem vai pra cidade estudar, e volta pra mandar. De quem trocou a enxada pela batina, pela farda ou pelo diploma, mas não trocou o olhar sobre o outro. É sobre a terra que parece de quem trabalha, mas é sempre do outro.

Como vocês sabem, além de economista eu sou artista independente. E para homenagear o Milton e contar essa história do Brasil que se repete, iremos estrear no dia 01 de Novembro o show Dabliu canta Milton: Tudo Será Como Antes. Você pode ouvir uma playlist especial que eu fiz para aquecer para o show aqui e adquirir os ingressos aqui. O título desse show não é uma promessa, nem uma saudade. É uma constatação amarga. Porque, no Brasil, a história parece girar em círculos. Desde sempre, nada mudou de verdade. A cada geração, vemos as liberdades ameaçadas. Os militares voltam ao discurso da ordem. As elites voltam a sonhar com o retrocesso. O golpe, que já foi de espada, farda ou caneta está sempre rondando.

Milton é um artista que merece ser celebrado em vida. Lembrado. Ouvido. Passado como um presente para quem ainda está por vir. E eu tenho orgulho de ser um filho de Milton. Quando a sua voz se cala, o país perde um pouco de si. Mas o legado que ele construiu, esse patrimônio imaterial que une fé, arte e afeto, continua corrigindo a rota de um país que, às vezes, parece esquecer o que realmente tem valor.

O show Dabliu canta Milton: Tudo Será Como Antes, não é uma tentativa de reviver o passado, mas de agradecer. De transformar a saudade em celebração. Porque, no fundo, a grande ironia é essa: ainda que o corpo esqueça, a música lembra. E enquanto houver alguém disposto a cantar Milton, tudo será como antes.

R. J. Dabliu é economista, professor universitário, compositor e palestrante. É autor dos livros “Mill Sentidos da Vida”, “O conto da raposa vermelha” e apresentador na série de vídeos para o YouTube, “EU NÃO LI SHAKESPEARE”.

Me siga no Instagram @oficialdabliu.

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