Hoje esse economista não veio falar de números, mas de sonhos. Assisti, neste último fim de semana, ao filme Milton “Bituca” Nascimento, que estreou no último dia 27 nos cinemas e saí da sala com a certeza de que os sonhos realmente não envelhecem e de que a poesia de Milton é a prova de que eles também não morrem.

Milton Nascimento está de perfil com uma boina e um leve sorriso no rosto
Milton “Bituca” Nascimento estreou dia 27 de março nos cinemas de todo o Brasil. (Foto: divulgação)

Vendo o rosto marcado, com os olhos e os lábios trêmulos, daquele velho homem preto, estagnado diante da tela, lembrei do meu pai. Lembrei de tantos avôs e avós, nossos antepassados e, quando digo ‘nossos’, não falo só dos meus, mas de todos nós brasileiros e da construção fatídica da nossa história por meio da escravidão e da luta. Ver o Milton sendo celebrado em vida é a emoção que cada um de nós merece sentir. Milton “Bituca” Nascimento é a cristalização do sonho de um menino pobre, adotado por uma família amorosa – uma história que muitos “Miltons” não tiveram a chance de viver.

Pessoalmente, sinto como se as canções de Milton Nascimento estivessem no meu imaginário a vida toda, refletissem a minha infância, a voz da minha mãe, o cheiro do vento da “ruinha” em frente à minha casa onde andava de bicicleta, os sons do meu tecladinho de pilhas e o gosto amargo do passar do tempo junto com as pessoas que já fizeram sua travessia. Lembram a mim, filho do branco e do preto, correndo atrás de passarinho, sempre pequenino.

Não sei precisar ao certo quando começou meu relacionamento musical com Milton Nascimento. Só sei que a matéria-prima das suas canções, os sonhos, a amizade, o amor pelas pessoas, é o que sempre norteou as coisas que eu escrevo. Quando lancei meu primeiro álbum, em 2012, o “Sobre os Ombros de Gigantes”, muitas resenhas viram ecos do Clube da Esquina em canções como “Aeroporto” e “Submarino Amarelo”. Talvez porque quem bebe desta fonte nunca está só: carrega o som de Minas nos ouvidos e o coração aberto para o mundo.

Milton “Bituca” Nascimento e a imortalidade

Ainda que tenha como principal mote os shows da turnê de encerramento da carreira nos palcos, Milton “Bituca” Nascimento não foca no fim, mas na imortalidade. Em praticamente duas horas de tela, grandes artistas, não só do Brasil, mas do mundo, detalham, encantados, a forma como Milton faz parte não só de suas vidas, mas do seu inconsciente musical e emocional com a narração de ninguém menos que Fernanda Montenegro, colocando seu grave timbre a serviço da magia de Bituca.

Acho que o que mais me chamou a atenção no filme foi a recusa ao clichê do “drama do fim”, facilmente comercializável no caso de uma turnê de despedida. Salvo em poucos momentos, como quando Gilberto Gil medita sobre a brevidade da vida, a emoção é um presente por revisitar sua trajetória, seus velhos amigos músicos e compositores, artistas veteranos e contemporâneos, tentando colocar em palavras o que esse homem representa para todos nós. Milton construiu pontes até mesmo entre continentes. E precisa ser dimensionado para as novas gerações.

Orgulhoso camarada, de viola em vez de enxada, sou hoje o resultado da luta de muitos homens pretos como Milton. A lembrança vaga de um sonho permanece, mas a música de Milton não é sonho, é vida real. Um convite para que a gente não se esqueça da Gente, como uma pera se esquece sonhando numa fruteira.

Serviço: Cine Passeio. Confira a programação.

R. J. Dabliu é economista, professor universitário, compositor e palestrante. É autor dos livros “Mill Sentidos da Vida”, “O conto da raposa vermelha” e apresentador na série de vídeos para o YouTube, “EU NÃO LI SHAKESPEARE”.

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