A descoberta de moléculas orgânicas de cadeia longa em Marte, realizada pelo rover Curiosity da NASA, representa um marco na busca por sinais de vida fora da Terra. Os compostos detectados têm estrutura semelhante a ácidos graxos, considerados elementos fundamentais para a formação de membranas celulares na Terra. Embora não representem, por si só, evidência de vida passada, esses compostos reforçam a hipótese de que Marte, em algum momento do passado, abrigou condições favoráveis à vida microbiana.

O achado foi detalhado em artigo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences e se junta a outras evidências acumuladas ao longo de mais de uma década de operações do Curiosity na cratera Gale, uma antiga bacia de sedimentos lacustres.
Moléculas orgânicas complexas em Marte: o que são e por que são importantes
As moléculas orgânicas são compostos que contêm carbono e estão frequentemente associados à vida. Na Terra, estruturas complexas como ácidos graxos são essenciais para a formação de membranas celulares, elemento-chave para a origem da vida. No entanto, essas moléculas também podem surgir por processos não biológicos, como reações químicas entre minerais e água em fontes hidrotermais.
A detecção de moléculas com entre 11 e 13 átomos de carbono, como decano, undecano e dodecano, representa a identificação das maiores cadeias orgânicas já registradas em Marte até hoje. A origem dessas moléculas permanece incerta, mas a sua presença confirma que Marte é capaz de preservar compostos frágeis por bilhões de anos, mesmo com a intensa radiação solar que atinge sua superfície.
Amostra histórica coletada há mais de uma década
A rocha que revelou os compostos foi perfurada pelo Curiosity em maio de 2013 em uma região da cratera Gale chamada Yellowknife Bay. O local, interpretado como leito de um lago antigo, já havia despertado o interesse da equipe científica por conter minerais argilosos — indicativos da presença prolongada de água líquida.
Desde a coleta, a amostra conhecida como “Cumberland” tem sido submetida a diversos testes pelo instrumento SAM (Sample Analysis at Mars), que aquece as amostras para liberar gases analisáveis. Parte da amostra foi armazenada para uso futuro, o que permitiu sua reavaliação mais de uma década após a coleta.

Metodologia inovadora levou à descoberta
A equipe liderada pela astrobióloga Caroline Freissinet desenvolveu novos métodos para aquecer a amostra em diferentes temperaturas, a fim de detectar aminoácidos. Embora esses compostos específicos não tenham sido encontrados, os cientistas observaram produtos como decano e undecano, que podem ser subprodutos da degradação térmica de ácidos graxos.
Experimentos de controle realizados na Terra, com argilas similares às de Marte, reforçaram essa hipótese. Os cientistas aqueceram ácido undecanoico com argila marciana simulada e detectaram os mesmos compostos identificados na amostra Cumberland.
A química de Marte e as condições para a vida
A presença de moléculas orgânicas mais complexas reforça a teoria de que ambientes aquáticos antigos em Marte podiam manter as condições necessárias para a formação de compostos prebióticos. Estudos anteriores já haviam indicado que a cratera Gale abrigou água líquida por milhões de anos, criando um cenário propício à atividade química necessária à vida.
Daniel Glavin, coautor do estudo e cientista do Goddard Space Flight Center da NASA, destacou que o ambiente em Yellowknife Bay foi ideal para a preservação de moléculas orgânicas. Segundo ele, a formação de folhelhos no fundo do lago antigo pode ter aprisionado compostos frágeis em grãos finos, protegendo-os da radiação.
Biossinais e a fronteira da astrobiologia
Apesar de não constituírem evidência direta de vida, os compostos detectados são consistentes com os tipos de moléculas que, na Terra, estariam associadas a processos biológicos. A astrobióloga Amy Williams, da Universidade da Flórida, explicou que ácidos graxos com mais de 12 átomos de carbono são raramente produzidos por processos não biológicos. Isso não significa que a vida existiu em Marte, mas sim que a descoberta é compatível com as condições necessárias à sua origem.
Outros cientistas reforçam essa análise. Ben K.D. Pearce, da Universidade de Purdue, classificou a descoberta como a mais promissora até hoje relacionada à possibilidade de vida em Marte. Para ele, encontrar moléculas relacionadas à formação de membranas celulares é um passo significativo na direção certa.
Missões futuras e a importância do retorno de amostras
A descoberta amplia o interesse na realização de missões que possam trazer amostras marcianas para estudo em laboratórios terrestres. Embora o Curiosity não tenha capacidade de devolver amostras à Terra, o rover Perseverance, que explora a cratera Jezero desde 2021, já está armazenando amostras com esse objetivo.
A missão Mars Sample Return, liderada pela NASA em parceria com a Agência Espacial Europeia (ESA), prevê o envio de foguetes a Marte na década de 2030 para recuperar e trazer essas amostras. A ESA também planeja lançar em 2028 o rover ExoMars Rosalind Franklin, que poderá perfurar até dois metros abaixo da superfície marciana — profundidade onde moléculas orgânicas podem estar mais protegidas da radiação.
Ashley Murphy, do Instituto de Ciência Planetária, destacou que apenas análises laboratoriais com alta sensibilidade poderão determinar se os compostos encontrados são de origem biológica ou não. Isso exige a análise direta em solo terrestre.
Implicações para a história da vida no Sistema Solar
Caso a origem biológica das moléculas detectadas na amostra Cumberland seja confirmada no futuro, isso poderia significar que Marte teve vida microbiana há cerca de 3,7 bilhões de anos — período próximo ao surgimento da vida na Terra.
A descoberta também fortalece a ideia de que a vida pode não ser exclusiva do planeta Terra. Se condições adequadas à vida existiram em dois planetas do mesmo sistema solar, isso ampliaria a probabilidade de existência de vida em outros locais do universo, especialmente em exoplanetas com características semelhantes às da Terra.
A missão Curiosity no contexto da exploração de Marte
Lançado em 2011 e ativo desde 2012, o rover Curiosity é responsável por algumas das descobertas mais relevantes sobre o passado geológico e ambiental de Marte. Ao percorrer a cratera Gale e subir o Monte Sharp, o robô explorador já percorreu mais de 34 quilômetros, analisando camadas geológicas que registram a transição de um ambiente úmido para um planeta seco.
O objetivo da missão não é detectar vida, mas sim entender se Marte foi habitável no passado. As descobertas recentes, porém, apontam que os limites entre habitabilidade e biossinais estão se estreitando.
Desafios técnicos e limitações dos instrumentos atuais
O SAM, responsável pela análise das amostras, não é capaz de detectar moléculas com cadeias extremamente longas ou estruturas mais delicadas como proteínas ou açúcares. No entanto, sua capacidade de detectar fragmentos orgânicos complexos já indica que Marte pode preservar compostos relevantes para a astrobiologia.
Freissinet, principal autora do estudo, afirmou que os resultados estão no limite do que o Curiosity pode realizar. Ainda assim, eles oferecem pistas valiosas sobre a química do planeta e abrem caminho para pesquisas mais aprofundadas.
Continuidade das investigações com novos experimentos
Mesmo sem retornar a Yellowknife Bay, o Curiosity ainda preserva porções da amostra Cumberland em compartimentos internos. A equipe planeja realizar novos testes com essas amostras, usando abordagens químicas diferentes. A expectativa é que novos experimentos revelem cadeias orgânicas ainda mais complexas.
“Essa é a amostra mais valiosa que temos a bordo”, afirmou Freissinet. “Ela ainda guarda segredos, e precisamos continuar investigando.”
O futuro da pesquisa sobre vida em Marte
A detecção de compostos orgânicos complexos em Marte representa um passo significativo na longa busca por entender se houve, ou ainda há, vida fora da Terra. Embora ainda não seja possível confirmar essa hipótese, a descoberta reforça a necessidade de investimentos em missões interplanetárias e no retorno de amostras para análise em laboratórios terrestres.
Enquanto isso, a comunidade científica segue monitorando os dados transmitidos pelo Curiosity e pelo Perseverance, na esperança de que novas pistas possam surgir a qualquer momento — e, quem sabe, nos aproximar de uma resposta definitiva sobre a vida no planeta vermelho.
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