Comentários do professor João Paulo Ocke, do curso Apogeu, sobre a prova de Filosofia, da segunda fase do vestibular da Universidade Federal do Paraná:
A citação a seguir é referência para as questões 01 a 03.
“Ademais, já que o termo ‘bem’ tem tantas acepções quanto ‘ser’ (…) obviamente ele não pode ser algo universal, presente em todos os casos e único, pois então ele não poderia ter sido predicado de todas as categorias, mas somente de uma. Além disto, já que há uma ciência única das coisas correspondentes a cada Forma, teria de haver uma única ciência de todos os bens; mas o fato é que há muitas ciências, mesmo das coisas compreendidas em uma categoria única — por exemplo, a da oportunidade, pois a oportunidade na guerra é estudada pela estratégia, e na doença pela medicina, e a moderação quanto aos alimentos é estudada na medicina e nos exercícios atléticos pela ciência da educação física. Poder-se-ia perguntar o que se quer dizer precisamente com ‘um homem em si’, se (e este é o caso) a noção de homem é a mesma e uma só em ‘um homem em si’ e em um determinado homem. Na verdade, enquanto eles são homens não diferem em coisa alguma, e sendo assim, o ‘bem em si’ e determinados bens não diferirão enquanto eles foram bons. Tampouco o ‘bem em si’ será melhor por ser eterno, porquanto aquilo que dura mais não é mais branco do que o efêmero.”
(Aristóteles, Ética a Nicômaco, Livro I, § 6, 1096a-1096b)
QUESTÃO 1 – Por que, segundo Aristóteles, é um equívoco pensar o bem como algo universal e eterno?
RESPOSTA: Para Aristóteles, as coisas do mundo sensível é que têm, de fato, ser e o bem encontra-se nas próprias coisas e pode ser conhecido por meio do intelecto, do exercício da razão. Portanto, o “universal” e o “eterno” não são atributos determinantes da natureza do bem supremo, que é efetivamente atingível e não apenas passível de ser abstratamente considerado.
QUESTÃO 2 – Algumas linhas antes da passagem acima, Aristóteles emprega a palavra “relativo” para se referir ao que existe por derivação e acidente. Nesse sentido, defender a existência de “um homem em si” e de “um bem em si” é o mesmo que admitir que tanto homens quanto bens existiriam apenas como algo relativo? Por quê?
RESPOSTA: Aristóteles, no trecho citado, não fundamentou, de forma reducionista, a compreensão de “homens” e de “bens” no relativismo. Aristóteles apresenta uma discordância em relação a Platão, que considera o bem como uma generalidade correspondente a uma única Forma ou Ideia. Aristóteles, então, admite que a “substância” tem, inclusive, uma natureza, que é a de ser anterior ao “relativo” e que, portanto, o bem é predicado de diversas categorias.
QUESTÃO 3 – Apesar de criticar acima a noção de “um bem em si”, universal e eterno, Aristóteles defenderá a seguir a necessidade de um bem supremo e autossuficiente. De que modo a noção de utilidade, contida na tese de que não se pode “praticar belas ações sem os instrumentos próprios”, contribui para desfazer essa aparente contradição na filosofia aristotélica?
RESPOSTA – O bem supremo não é apenas alcançado pelo exercício da razão; é necessário que seja alcançado também pela atividade. Entre os vários bens há o que é supremo que, por sua vez, para ser alcançado, requer bens exteriores. O bem supremo é autossuficiente no sentido de que ele não é meio para alcançar outros bens, mas é o fim a ser alcançado com a utilização de outros bens.
A citação a seguir é referência para as questões 04 a 06.
“Mas eu, o que sou eu, agora que suponho que há alguém que é extremamente poderoso e, se ouso dizê-lo, malicioso e ardiloso, que emprega todas as suas forças e toda a sua indústria em enganar-me? Posso estar certo de possuir a menor de todas as coisas que atribuí há pouco à natureza corpórea? Detenho-me em pensar nisto. Com atenção, passo e repasso todas essas coisas em meu espírito, e não encontro nenhuma que possa dizer que exista em mim. Não é necessário que me demore a enumerá-las. Passemos, pois, aos atributos da alma e vejamos se há alguns que existam em mim. Os primeiros são alimentar-me e caminhar; mas, se é verdade que não possuo corpo algum, é verdade também que não posso nem caminhar nem alimentar-me. Um outro é sentir; mas não se pode também sentir sem o corpo; além do que, pensei sentir outrora muitas coisas, durante o sono, as quais reconheci, ao despertar, não ter sentido efetivamente. Um outro é pensar; e verifico aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso; pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. Nada admito agora que não seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cuja significação me era anteriormente desconhecida. Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? (…) Eu não sou essa reunião de membros que se chama o corpo humano; não sou um ar tênue e penetrante, disseminado por todos esses membros; não sou um vento, um sopro, um vapor, nem algo que posso fingir e imaginar, posto que supus que tudo isso não era nada e que, sem mudar essa suposição, verifico que não deixo de estar seguro de que sou alguma coisa.”
(Descartes, Meditações, Meditação Segunda, § 7)
QUESTÃO 4 – No texto acima, Descartes emprega um tradicional procedimento filosófico, que consiste em identificar as coisas por meio de seus atributos. Por meio desse procedimento, ele identifica duas espécies de coisas (substâncias). Quais são essas duas espécies de coisas (substâncias) assim identificadas e quais os principais atributos de cada uma delas?
RESPOSTA: O dualismo cartesiano se manifesta como “res cogitans” (coisa pensante) e “res extensa” (coisa extensa): mente e corpo. Os principais atributos da mente são pensar e constituir o elemento que define a existência do meditante. Os principais atributos do corpo são a capacidade de se alimentar, de caminhar, de sentir e o fato de possuir membros.
QUESTÃO 5 – No texto acima, Descartes refere-se a “alguém que é extremamente poderoso (…) malicioso e ardiloso” e que emprega todas as suas forças para nos enganar. Mas Descartes jamais afirma que esse gênio maligno verdadeiramente exista. Para o argumento que ele está desenvolvendo, basta a mera possibilidade da sua existência. Qual o papel da mera possibilidade da existência desse gênio maligno no argumento de Descartes?
RESPOSTA: O papel é o de levar Descartes à dúvida, inclusive à dúvida radical que levará o meditante a ter certeza sobre a própria existência. A possibilidade da existência do gênio maligno força Descartes a duvidar das crenças e dos conhecimentos anteriores para chegar às verdades que ele quer definir.
QUESTÃO 6 – Para Descartes, o que é mais fácil conhecer: nosso espírito ou o que lhe é exterior? Por que um e não o outro?
RESPOSTA: O espírito é mais fácil de conhecer do que o que lhe é exterior, porque o espírito se revela no momento mesmo em que se manifesta como pensamento – o espírito é conhecido no momento mesmo em que conhece, ele se revela por inteiro enquanto conhece. O que é exterior à mente encontra-se numa situação de dubitabilidade, pois requer, inclusive, os sentidos para ser conhecido e os sentidos não são confiáveis.
A citação a seguir é referência para as questões 07 e 08.
“Enquanto o indivíduo, em contraposição a outros indivíduos, quer conservar- se, ele usa o intelecto, em um estado natural das coisas, no mais das vezes somente para a representação: mas, porque o homem, ao mesmo tempo por necessidade e tédio, quer existir socialmente e em rebanho, ele precisa de um acordo de paz e se esforça para que pelo menos a máquina bellum omnium contra omnes (a guerra de todos contra todos) desapareça de seu mundo. Esse tratado de paz traz consigo algo que parece ser o primeiro passo para alcançar aquele enigmático impulso à verdade. (…) Os homens, nisso, não procuram tanto evitar serem enganados, quanto serem prejudicados pelo engano: o que odeiam, mesmo nesse nível, no fundo não é a ilusão, mas as consequências nocivas, hostis, de certas espécies de ilusões. É também em um sentido restrito semelhante que o homem quer somente a verdade: deseja as consequências da verdade que são agradáveis e conservam a vida: diante do conhecimento puro sem consequências ele é indiferente, diante das verdades talvez perniciosas e destrutivas ele tem disposição até mesmo hostil.
(Nietzsche, “Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral”, § 1)
QUESTÃO 7 – No texto acima, Nietzsche afirma que o que “deve ser verdade” é o resultado de um “acordo de paz”. Isso seria o mesmo que dizer que a busca da verdade é, em última instância, determinada por necessidades sociais? Por quê?
RESPOSTA: É o homem que, por necessidade ou tédio, quer existir socialmente e em rebanho e, para tanto, faz o “acordo de paz” com outros homens. Nietzsche atribui, portanto, ao homem acomodado e acovardado, e não às necessidades sociais, a responsabilidade pela busca da verdade.
QUESTÃO 8 – Na sequência da passagem acima, Nietzsche apresentará a sua tese do caráter antropomórfico da verdade. Há elementos (conceitos, afirmações, argumentos etc.) na passagem acima que antecipam o conteúdo dessa tese? Cite e analise um deles.
RESPOSTA: Os seguintes trechos podem ser citados:
“Os homens, nisso, não procuram tanto evitar serem enganados, quanto serem prejudicados pelo engano: o que odeiam, mesmo nesse nível, no fundo não é a ilusão, mas as consequências nocivas, hostis, de certas espécies de ilusões.”
“…diante do conhecimento puro sem consequências ele é indiferente, diante das verdades talvez perniciosas e destrutivas ele tem disposição até mesmo hostil.”
A análise deve enfatizar que a verdade que o homem busca é antropomórfica no sentido de que é uma criação puramente humana, fundada em ilusões e dissimulações criadas pelo próprio intelecto humano, que, por sua vez, não tem condições de estabelecer verdades puras, universais, eternas, porque o homem e suas circunstâncias mudam.
O comentário a seguir é referência para as questões 09 e 10.
Na sua apresentação do ensaio “Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral” de Nietzsche (In: Antologia de Textos Filosóficos, SEED-PR, 2010), o professor Antonio Edmilson Paschoal observa que, segundo o autor desse ensaio, “o intelecto e, por conseguinte, o conhecimento abstrato que é o seu modo de operar, possui apenas uma função instrumental: ele é um meio usado para a sobrevivência do animal homem, do mesmo modo como outros animais usam garras, chifres e presas. Por este motivo, não se pode esperar do intelecto e do conhecimento abstrato, qualquer desvelamento do mundo que apresente sua essência última, a coisa em si. Para Nietzsche, qualquer pretensão acerca do intelecto que o lance para além dessa sua capacidade só pode ocorrer por uma ilusão produzida pelo próprio intelecto, e qualquer sentido que ele encontre por trás da vida, só poderá fazê-lo porque foi ele mesmo que o colocou ali” (p. 526).
QUESTÃO 9 – Explique por que a seguinte afirmação de Aristóteles poderia ser considerada com um exemplo da espécie da pretensão do intelecto criticada por Nietzsche: “o homem é por natureza um animal social”
RESPOSTA: Aristóteles tem a pretensão de desvelar a natureza do homem, atribuído uma essência última ao homem: a da sociabilidade. Para Nietzsche isso é impossível de ser determinado pela razão. Segundo Nietzsche, é o próprio Aristóteles que estabelece tal natureza, que não pode ser alcançada pelo intelecto.
QUESTÃO 10
RESPOSTA: Descartes manifesta uma extrema confiança na razão, considerando-a capaz de proferir verdades absolutas e universais e atribui à razão um grande poder para estabelecer conhecimentos abstratos indubitáveis. Tais pretensões cartesianas são rejeitadas por Nietzsche.
COMENTÁRIO GERAL:
A prova apresentou um ótimo nível e manteve a tradição de exigir do aluno a compreensão estrita das obras destacadas no programa do Processo Seletivo, o que é importante diante da extensão, da complexidade do debate filosófico ao longo da história e do pequeno número de aulas destinadas à Filosofia no Ensino Médio.
No entanto, é preciso mais cuidado com a formulação de questões como a de número 08, que podia ser respondida com a tese esboçada no texto referente às questões 09 e 10.
Muito bom a UFPR ter elaborado questões (a 09 e a 10) que levam o aluno a estabelecer relações entre os textos: afinal, o diálogo entre os filósofos é a própria matéria da Filosofia. Ressalte-se que isso foi realizado respeitando-se as indicações bibliográficas (ainda que o texto referente às questões 09 e 10 seja de autoria de um comentador da obra de Nietzsche).
Foi importante também a alteração da indicação bibliográfica da obra de Nietzsche.