Os tropeiros que passaram pela região das araucárias no final do século 17 não imaginavam, salvo alguma profecia desconhecida hoje, que aqui por essas bandas cresceria a metrópole que hoje Curitiba é.
De lá pra cá, a cidade cresceu, virou versos com Paulo Leminski, foi capital do Brasil por quatro dias em 1.969, apresentou a estação-tubo ao mundo e se reinventa dia a dia.
Pois bem, cá estamos, 322 anos depois. Mas afinal de contas, que cidade é essa?
Curitiba se tornou uma cidade que pode ser narrada a partir de diversos aspectos. Dos mitológicos biarticulados vermelhos às capivaras do parque Barigui, quase sempre tão coadjuvantes e, recentemente, promovidas a celebridades na internet. Do Santa Cândida ao Pinheirinho, 34 estações-tubo e infinitas possibilidades.
São inúmeras as formas de se conhecer uma cidade. Aqui por essas bandas, talvez a mais procurada pelos exploradores seja a linha Turismo da prefeitura. É em busca dessas impressões que embarco em um dos elegantes ônibus verdes de dois andares. Um passeio desprevenido no segundo andar sem cobertura, em dia de sol, pode render um inesperado bronzeado de lembrança. Um souvenir raro desta que, ano após ano, figura entre as capitais mais chuvosas.
O ponto inicial exclui qualquer possibilidade de coincidências: praça Tiradentes, a poucos metros do marco zero da cidade, diante da Catedral Metropolitana. Um conjunto de cartões postais.
O ônibus encosta, embarco e, como fosse o sinal para a partida, o sino da igreja dispara as duas badaladas das 14h e o motorista arranca. Uma nova Curitiba está por vir.
Mapas em punhos, todos à bordo procuram saber quais as próximas paradas, os retratos da cidade que estariam adiante. Mas além de cartões postais, o que se revela no trajeto é o cotidiano de uma cidade.
Frio, mas nem tanto
Em uma das paradas sobem três companheiras. Entre comentários e risadas escolhem um lugar ao sol para sentar. Mal o ônibus acelera e já sacam seus smartphones. Dedos ágeis tiram fotos e já as encaminham a alguém. “Posta no grupo e marca a gente”, comenta uma delas. Arruma o cabelo, clique, sorri para a câmera, clique, “Fica melhor na sombra né?” e outro clique.
A descrição acima poderia ser de um grupo de amigas, em qualquer faixa etária, mas as três são mãe e filhas. Dona Renilda Freire, 68, veio do Acre para conhecer Curitiba com as filhas Conceição, 47, e Vânia, 45.
“A gente veio atrás do frio, mas até agora só vento fresco”, conta dona Renilda, vestida num casaquinho de lã preta mesmo sob um sol de rachar a cabeça de qualquer curitibano.
Dona Renilda (esq.), Conceição e Vânia, ao fundo.
Entre um clique e outro as três conhecem a cidade sem desembarcar do ônibus e comparam os bairros. “Fora do centro é bem melhor. Mais tranquilo, mais organizado. Se fosse pra morar, eu viria pra cá”, conta Conceição.
Uma cidade que se revela para cada olhar.
Cotidiano entre os pontos
A cada esquina dobrada, uma nova faceta dessa Curitiba outonal dos fins de março, com calor ao sol e frescor à sombra dos prédios. O corre-corre do Centro dá uma sensação de privilégio pra quem está ali, dois andares acima das vias, com todo tempo do mundo para conhecer a cidade. Na rua, milhares de rostos parecem ir e vir sem destino certo.
Aos poucos, os bairros.
Do Rebouças ao Vista Alegre.
Do Tingui a Santa Felicidade.
O caos fica pra trás.
À margem da via, surgem casinhas de madeira pintadas de azul, amarelo, cores vivas enfim. Bem diferentes dos prédios em tons pastéis e vidros esverdeados dos metros quadrados mais caros da cidade. Lambrequins e chaminés fumegantes atrás de muros baixos, que resistem aos dias de hoje, que nos exigem grades e muralhas cada vez mais altas.
Mas elas seguem lá, com seus quintais impecáveis, cuidados com a paciência que só parece possível a quilômetros do Centro. Piás e gurias que crescem e seguem construindo a história desde que a cidade era ponto de parada dos tropeiros a caminho de São Paulo e que hoje tem mais de 1,8 milhão de habitantes.
Reza a lenda que o curitibano é fechado, avesso a forasteiros. Sei não. Sobre o telhado de uma igrejinha um operário acena para os passageiros, que se dividem entre responder e tirar fotos. Smartphones surgem, disputando espaço com o que outrora era símbolo infalível de turistas: câmeras penduradas no pescoço. As telinhas touch screen ganham espaço na preferência do pessoal.
Japoneses, polacos, índios, germânicos, italianos. A construção da história de Curitiba tem um tijolinho de cada canto do mundo. Basta prestar olhar os bairros, entre um cartão postal e outro.
A cidade aos poucos se revela. Um homem pedalando de sunga aqui, o vampiro que se camufla na multidão, uma construção que se ergue ali. Poucos passam imunes ao imenso buraco que se tornou o lugar em que um dia funcionou a centenária fábrica da Leão Junior S.A., no Rebouças.
Do Jardim Botânico ao Parque Barigui, sem deixar de fora Ópera de Arame, Parque Tanguá e outros pontos que ilustram Curitiba, vários aspectos de uma mesma cidade.
Um olhar do Rio
No Parque Tanguá, emolduradas com o sol ao fundo, as irmãs cariocas Marília Gomes, 51, e Meri Paiva, que volta à cidade no dia do seu aniversário de 58 anos. Comemora passeando.
Meri de Paiva (esq.) e Marília Gomes
“Curitiba cresceu demais, muita coisa mudou. Muitos prédios novos, mas os parques continuam lindos. É uma ótima cidade pra conhecer pessoas novas”, diz a aniversariante.
Há quem dê de ombros para o título de Capital Ecológica, diz que é coisa de outros tempos. Mas uma vista 360° da cidade do alto dos 109,5 m da Torre Panorâmica, nas Mercês, serve para, ao menos, reconsiderar a posição. É verde que se embrenha entre os prédios por todos os lados. Além do imponente Parque Barigui, o mais famoso da cidade, logo ao lado.
O verde resiste em meio ao concreto armado
Curitiba tem hoje 29 parques e bosques, além de 924 praças e jardins. O que rende uma área verde de 64,5 m² para cada habitante.
De personalidade forte e temperamento um tanto radical, Curitiba pode enlouquecer um meteorologista desavisado. O frio cinza da manhã nunca promete o sol do meio-dia, sequer a chuva do entardecer.
29 de março é dia do 322º aniversário da capital dos paranaenses. Se você for à festa, não se esqueça de levar blusa, guarda-chuva e protetor solar.
De volta ao ônibus, o passeio passa pelo Setor Histórico da cidade, com ruínas e paralelepípedos de outras épocas e segue de volta ao marco zero da cidade. A chegada é anunciada às 19h com as sete badaladas da Catedral, que parece noticiar a chegada do ônibus e o frescor da noite. É hora de desembarcar e voltar a fazer parte do cotidiano da cidade que se constrói a cada dia.