Imagine a seguinte cena: um produtor rural, após enfrentar uma sequência de safras prejudicadas por fatores climáticos, deixa de pagar as parcelas do financiamento de seus maquinários — colheitadeira, trator, plantadeira, plataforma, entre outros. Como o contrato foi firmado com garantia em alienação fiduciária, o banco rapidamente consolida a propriedade dos bens em seu nome, sem necessidade de ação judicial, e pede ao juiz a busca e apreensão.

Uma vez na posse dos maquinários, o credor procede à venda, mas não informa o valor da negociação, tampouco detalha as despesas envolvidas. Age como se nada tivesse acontecido e continua cobrando o saldo integral da dívida. O devedor, então, fica sem saber se ainda deve algo, quanto deve ou mesmo se teria algum crédito a receber.
Longe de ser uma situação rara, esse tipo de prática é bastante comum e afeta produtores rurais, empresários urbanos e até pessoas físicas, que acabam prejudicados e, muitas vezes, inviabilizados em suas atividades.
O funcionamento da alienação fiduciária
A alienação fiduciária é uma modalidade de garantia em que a propriedade (o chamado “domínio resolúvel”) e a posse indireta do bem passam ao credor. O devedor continua usando o bem, mas se não pagar qualquer parcela, pode ter todo o contrato vencido de forma antecipada. Nesse caso, é notificado pelo cartório para quitar a dívida. Não o fazendo, a propriedade é consolidada em nome do credor fiduciário.
Na prática, significa que o credor se torna dono legítimo do bem. Se o contrato for quitado, a propriedade retorna integralmente ao devedor; se não, o credor pode requerer judicialmente a busca e apreensão.
É por isso que essa modalidade de garantia costuma ser considerada uma das mais arriscadas: basta o envio de uma notificação ao endereço informado no contrato — ainda que o devedor não a receba pessoalmente — para que a mora esteja configurada. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu, inclusive, que a notificação por e-mail constante do contrato é válida, desde que haja confirmação de recebimento, independentemente de quem tenha aberto a mensagem.
Para bens imóveis (casas, apartamentos, áreas rurais), aplica-se a Lei nº 9.514/1997. Já para bens móveis, como veículos e maquinários agrícolas, a disciplina está no Decreto-Lei nº 911/1969.
A obrigação de prestar contas
O artigo 2º desse decreto-lei é claro: o credor fiduciário que vende um bem apreendido deve aplicar o valor da venda no pagamento do crédito e das despesas decorrentes, entregando ao devedor eventual saldo remanescente, com a devida prestação de contas.
Em outras palavras, não cabe ao devedor provar nada. É obrigação do credor fiduciário apresentar uma planilha detalhando:
- o valor integral da dívida;
- todas as despesas (custas cartorárias, tributos, despesas com transporte etc.);
- o valor obtido com a venda;
- o saldo final, que pode ser débito ou crédito.
Tudo isso deve vir acompanhado de documentos comprobatórios.
Na prática, porém, muitos credores não cumprem esse dever. Alguns simplesmente se omitem; outros apresentam informações incompletas, sem qualquer prova documental.
Como o devedor pode reagir
O primeiro passo é enviar uma notificação extrajudicial ao credor, exigindo a prestação de contas. Se não houver resposta em prazo razoável, o caminho é ajuizar a chamada Ação de Exigir Contas, prevista no artigo 550 do Código de Processo Civil.
Nessa ação, o juiz citará o credor para prestar contas ou apresentar defesa em 15 dias. Se não prestar, ou se prestar de forma inadequada, o devedor poderá apresentar suas próprias contas — e, nesse caso, o credor não poderá contestar os valores indicados.
Exemplo: um caminhão é apreendido e vendido sem que haja prestação de contas. Se o devedor ingressar com a ação e o credor permanecer inerte, o devedor poderá apresentar sua versão dos valores, como a cotação da Tabela Fipe, e essa será considerada para fins de apuração do saldo.
Cessão do crédito
É comum que o credor fiduciário venda o crédito para outra empresa, geralmente securitizadoras. Nessa hipótese, a nova credora assume também a obrigação de prestar contas, ainda que não tenha participado do contrato original.
Saldo devedor após a venda
Caso a venda do bem não seja suficiente para quitar a dívida, o credor poderá cobrar o saldo remanescente. Contudo, não pode fazê-lo por meio de execução, já que não há título líquido. A via adequada é a ação monitória, conforme já consolidado pela Súmula 384 do STJ.
Esse panorama mostra que muitos produtores e empresários sofrem com abusos de instituições financeiras, cooperativas, revendas e indústrias. Mas a lei assegura instrumentos de defesa. Conhecendo seus direitos, o devedor pode agir de forma estratégica, exigindo transparência e evitando cobranças abusivas.
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