Cotação: ★★★★★
Para você qual é a principal função da arte? Se logo veio a palavra entreter como resposta, isso pode significar um caminho pela superficialidade. Afinal, muito mais do que divertir em um período efêmero de tempo, a arte deve é perturbar, paralisar, inquietar, chacoalhar, mexer com a cabeça de quem está recebendo e processando todas as informações. Fazer a pessoa rever conceitos e repensar o mundo ao seu redor.
Assim é Coringa, o filme que traz, pela primeira vez aos holofotes, o vilão mais famoso e cultuado de Gotham City e também de todo o universo da DC Comics. O longa-metragem que chega agora aos cinemas é impactante e avassalador, principalmente por ir muito além de ser algo que restrinja ao gênero de ação com super-heróis. Mesmo tendo como foco principal o surgimento da persona histriônica, colorida e de cabelos verdes que habita o inconsciente coletivo eterno dos fãs das histórias do Batman, este é um belo drama que cutuca algumas mais profundas feridas abertas da sociedade ocidental contemporânea. Não há como sair de sala do cinema, depois de duas horas de projeção, sem ficar emocionalmente transtornado e intelectualmente abalado. O que explica o furacão que, no último festival de Veneza, roubou oito minutos de ovações e aplausos entusiasmados dos espectadores presentes e ainda rendeu à obra o prêmio principal do evento, o Leão de Ouro.
O diretor e corroteirista Todd Phillips conta aqui a origem do Coringa com requintes e tonalidades de crueldade. Na primeira metade ele desenvolve o caminho de desgraças, fracassos, preconceitos e infelicidade que marcam o cotidiano de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix). De dia ele trabalha como palhaço, fazendo propaganda de lojas nas ruas. De noite, sonha em virar um famoso ator de stand up comedy e por isso visita bares com atrações do gênero para estuda-las e assiste, ao lado da mãe doente, a um famoso programa de entrevistas na TV comandado pelo comediante Murray Franklin (Robert De Niro). Contudo, as nuances em que Arthur se banha até sucumbir mentalmente e chegar à insanidade são bem mais intensas e carregam junto o espectador rumo ao incômodo. É surra – seja física ou psicológica – que Fleck leva em todas as horas.
Também ajuda toda a degradação de Gotham City naquele comecinho dos anos 1980. As ruas estão sujas, o crime é cometido impunemente de noite e de dia. Os empregos estão escassos. Os políticos, por sua vez, pouco se importam para as pessoas. A ponto de um dos megaempresários locais, o truculento e bocudo Thomas Wayne (o pai do pequeno Bruce, aqui retratado de forma secundária e um pouco antes de entrar na adolescência) chamar o povo de palhaço e anunciar que irá concorrer à prefeitura porque se acha a salvação de todos os problemas. Portanto, nada muito diferente do que cada um de nós vê todo dia na realidade.
A lenta transformação do protagonista no Coringa conta com a genial interpretação de Joaquin Phoenix. Além de ter emagrecido bastante para o papel (volta e meia o ator tira a camisa em cena e dá para ver suas costelas aparecendo), ele constrói os vários tons de personalidade com leveza e natureza impressionante. Pode-se enxergar com clareza o Arthur depressivo, o Arthur revoltado, o Arthur psicótico, o Arthur ensandecido, o Arthur enigmático, o Arthur perverso, o Arthur compadecido, o Artur racional, o Arthur violentamente impiedoso. A dança realizada pela personagem em seus momentos explosivos de alegria se transforma em algo sobrenatural, sobretudo na hora em que sobe uma grande escadaria com passos que lembram gestos de tai chi. E ainda tem as várias horas da típica risada frouxa do vilão, fruto de uma disfunção neurológica, na qual Joaquin navega com maestria dramatúrgica. Por tudo isso, Phoenix já larga como o grande favorito na corrida pelos vindouros prêmios de melhor ator desta temporada.
A respeito da trilha sonora, merecem destaque as citações aos compositores Stephen Sondhein (“Send In The Clowns”, que aparece na voz de Frank Sinatra) e Charlie Chaplin (com a sua canção “Smile” dialogando diretamente com ações e ambientações do Coringa). É interessante citar que a letra desta música só foi feita pelo cineasta em 1954, quase duas décadas depois dele utilizar o seu instrumental no filme Tempos Modernos, que serviu como uma grande crítica social que utilizava o meio do entretenimento para questionar e analisar os tempos da Grande Depressão nos Estados Unidos. Durante uma cena de Coringa, este mesmo longa de Chaplin aparece sendo exiido em um dos cinemas de Gotham – o que leva a uma espécie metacrítica na obra de Phillips.
São tantos os pequenos detalhes que fazem ponte entre ficção e realidade em Coringa que se torna impossível para o espectador não sair abalado de alguma forma da sala de projeção. O que demonstra uma tacada certeira da DC Comics, depois de tantos fracassos conceituais explorando os medalhões Batman e Super-Homem em vários filmes nesta década. Quem diria que a primazia de reconstrução moral e artística da casa viria por intermédio de um vilão, que ainda pode apontar novos caminhos para que a fórmula de adaptações de super-heróis para o cinema evite cair de vez na exaustão da repetição contínua.
Coringa (Joker, EUA, 2019). Direção: Todd Phillips. Roteiro: Todd Phillips e Scott Silver. Com Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Francis Conroy, Brett Cullen, Dante Pereira-Olson. Warner. 121 minutos. Estreia nos cinemas brasileiros: 3 de outubro.