Curitiba - Finais nem sempre são bonitos, mas o Sepultura mostra na turnê Celebrating Life Through Death que o encerramento de uma trajetória 41 anos pode ser, acima de tudo, uma última mensagem de carinho aos fãs. O guitarrista da banda, Andreas Kisser, estará presente no derradeiro show em Curitiba, que será realizado na Ópera de Arame, na noite desta quinta-feira (29).

Nos pouco mais de 17 minutos de entrevista ao RIC.com.br, Kisser refletiu sobre o passado e o futuro (dele e da banda), mas principalmente avaliou como o Sepultura segue no presente trazendo perguntas fundamentais a cena musical brasileira.
“Fazer a arte pela arte, sabe, mano? E a gente, como eu disse aqui, passamos períodos bons e momentos financeiros, mas a arte sempre salvou. A música sempre salvou. Sempre uniu a família”.
Ao longo dos anos, Kisser se tornou uma das principais referências do Sepultura. Mesmo não fazendo parte da formação original, o guitarrista se juntou ao grupo em 1987 e formou uma das ‘escalações’ mais clássicas do rock brasileiro junto de Max Cavalera (vocal), Igor Cavalera (bateria) e Paulo Jr. (baixo).
Entre saídas e chegadas, a formação atual do Sepultura conta com Kisser e Paulo Jr., além de Derrick Green (vocal) e Greyson Nekrutman (bateria). Serão esses quatro os responsáveis por esquentar os fãs curitibanos, que mesmo com a temperatura prevista de 9º para o show, devem lotar a Ópera de Arame.
“É sempre especial tocar na Ópera do Arame. É um lugar maravilhoso. É um lugar com um clima muito especial, muito único. Um lugar lindíssimo. E Curitiba, como você falou, tem no sangue. Está na veia. É uma cidade muito importante na nossa história. A gente tem shows históricos”.
Além do Sepultura, Kisser desenvolve outros projetos paralelos, embora nem todos ligados com a música. Um exemplo é o Patfest, realizado desde 2022. O festival beneficente reuniu diversos artistas nacionais e internacionais desde a sua criação com o objetivo de arrecadar fundos para instituições de assistência social.
O Patfest ainda foi criado para homenagear Patrícia Perissinoto, esposa de Kisser, que morreu de câncer de cólon, aos 52 anos, em julho de 2022.
“Então, eu vou me dedicar mais a isso também, a esses projetos, além de coisas novas. Eu quero fazer música nova, eu quero fazer música diferente. Eu não quero sair do Sepultura e fazer um som do Sepultura com gente diferente. Não tem sentido isso, entendeu? Eu quero fazer experimentos, eu quero usar mais o violão, eu quero trabalhar com outros artistas, não só musicais, mas pintores e poetas, enfim, exacerbar na arte mesmo, sabe? Fazer coisas mais desafiadoras”
Kisser, Sepultura e os 30 anos de Roots

Em 2026, um dos discos mais importantes do rock brasileiro completa 30 anos. Roots está presente na lista de 100 melhores discos nacionais da Rolling Stones Brasil, mas acima disso, mostrou que é possível unir heavy metal com ritmos tradicionais do Brasil.
“Porque o Roots abriu uma porta muito grande, não só para o heavy metal nacional, essa coisa de utilizar os elementos, ritmos e sons da música brasileira, do samba, do carnaval, da percussão do Chico Science, aquela coisa do frevo, do Manguetown. Tudo influenciou a gente ali. O violão do Villa-Lobos, o violão do Egberto Gismonti”
Roots ainda se torna mais especial por ser o último álbum do Sepultura que contou com a formação original. Em dezembro de 1996, após Kisser, Igor e Paulo Jr. decidiram demitir Gloria Cavalera da função de empresária, ao alegarem que ela priorizava o marido, Max, nas ações de marketing da banda.
Max então comunicou aos demais integrantes que deixaria a banda. Mas se a formação clássica se foi, o mesmo não se pode dizer do Sepultura, que mesmo às portas do fim, entregou um dos melhores álbuns do grupo em 2020, com Quadra, que chegou a ultrapassar o sucesso de Roots em alguns países europeus, como Alemanha e Suécia.
Confira a entrevista de Kisser na íntegra
RIC.com.br: Como o Sepultura chega para esse último show em Curitiba?
Andreas Kisser: O mesmo que a gente tinha planejado. Uma escolha consciente. Em paz com a gente mesmo. Num momento muito bom, oportuno.
40 anos é uma marca muito importante. Uma vida dedicada à banda, ao Sepultura. E tudo que a gente conquistou e aprendeu com essa trajetória.
E acho que para a gente é um privilégio poder parar num momento como esse. Onde a gente está bem, a gente não está brigando. A gente está numa conexão fantástica, numa harmonia. Não só no palco, mas fora dele também. Junto com a equipe, com os managers. Com os fãs também.
Para que esperar algum problema, alguma situação interna ou externa para acabar com a banda? Acabar, brigar e ter que discutir. Enfim, fica essa ladainha para sempre. Um falando A, o outro falando Z.
E a gente está num momento muito bom. Como eu disse, um momento oportuno. São 40 anos.
Dá um tempo. Se for para sempre ou não, isso é irrelevante. Só o futuro vai dizer.
Mas o momento é da gente celebrar. Agradecer aos fãs. É um momento de agradecimento.
E um momento muito especial, muito positivo. Voltar a Curitiba, ao Sul, que a gente está fazendo agora, também é outro privilégio. É um show um pouco diferente do que a gente fez no ano passado.
O ano passado foi a primeira fase da turnê com o Greyson. O Greyson já está bem mais inteirado. A gente vai tocar algumas músicas diferentes que a gente não fez naquela época.
A gente está gravando disco ao vivo.
Então está sempre mudando o setlist para pegar mais possibilidades, etc. E é sempre especial tocar na Ópera do Arame. É um lugar maravilhoso. É um lugar com um clima muito especial, muito único. Um lugar lindíssimo. E Curitiba, como você falou, tem no sangue. Está na veia. É uma cidade muito importante na nossa história. A gente tem shows históricos. Vídeo do Ramones, que é sempre comentado. Na Pedreira, que foi um caos total. Chaos chamava tour, inclusive. Por causa do Chaos A.D. Mas enfim, é sempre um prazer voltar a Curitiba e ter essa oportunidade de ver nossos fãs face to face de novo.
RIC.com.br: Roots completa 30 anos em 2026. Qual o legado para o Sepultura e para a música brasileira que esse álbum trouxe?
Andreas Kisser: Cara, eu acho que cada um tem uma impressão disso. Cada um tem um momento. Tem gente que está ouvindo o Roots pela primeira vez hoje, por exemplo. Muita gente que ouviu o Roots naquela época não gostou. A galera mais radical.
Carlinhos Brown, percussão, que porr* é essa? Cadê as partes rápidas? Riff de uma nota só. Cara, teve muita gente que falou merd* pra caralh*. Enfim, isso é tão normal quando a gente faz algo novo na arte.
A primeira é ser criticada, jogar pedra, tomar ovo, vaia. O Villa-Lobos falava que teve uma época na carreira dele que ele mensurava o sucesso das obras pelas vaias. O Stravinsky foi a mesma coisa. Mozart foi o mesmo. Enfim. E isso o Roots fez.
Porque o Roots abriu uma porta muito grande, não só para o heavy metal nacional, essa coisa de utilizar os elementos, ritmos e sons da música brasileira, do samba, do carnaval, da percussão do Chico Science, aquela coisa do frevo, do Manguetown. Tudo influenciou a gente ali. O violão do Villa-Lobos, o violão do Egberto Gismonti.
Esse tipo de coisa estava muito dentro da gente. A gente queria exacerbar essa brasilidade na música junto com o nosso peso do Sepultura. Com a distorção, com as afinações baixas, etc. Explorar esse outro mundo.
Trabalhar com o Ross Robinson também foi fundamental. Ele é um produtor muito espiritual, muito orgânico. Tem que saber o motivo de tudo, o significado das coisas, o porquê colocar o solo aqui, o porquê falar essa palavra. Foi um processo muito intenso, muito difícil, porque a banda estava se desmontando, a empresária estava casada com o Max (Cavalera) e estava uma confusão do caralho, mas isso não atrapalhou a parte artística, não atrapalhou o estúdio, porque lá a gente se fechava nós quatro ou nós cinco com o Ross e lá a gente trabalhava, não tinha ninguém metendo o bedelho e atrapalhando aquele processo.
Então a gente soube separar um pouco, até na turnê que não aguentou, e o Max saiu da banda, porque a gente mandou a empresária embora e etc. Mas é um disco que é falado até hoje, é um disco que é uma referência inclusive pra gente. Você ouve o Roots hoje e parece que foi feito ontem, porque ele tem essa coisa viva.
Não usamos clique, não usamos nada tecnológico, num sentido de computação. Obviamente gravar os vocais e tudo, estava naquele processo do Pro Tools e etc. Mas foi tudo muito orgânico.
Fomos lá fazer o trabalho com a tribo xavante, o Carlinhos Brown veio e trouxe um outro tempero pra música. Ratamahatta a gente escreveu no estúdio juntos. Foi fantástico, é um disco fantástico e realmente muito corajoso. Até o pessoal da gravadora não entendeu muito bem o que a gente estava fazendo. E não era pra entender mesmo, porque a gente estava fazendo algo completamente novo. Como é que você vai entender algo que você nunca viu?
RIC.com.br: Com o fim do Sepultura, o futuro te preocupa?
Andreas Kisser: Não. E não estou muito preocupado com isso, mano. Assim, porque eu vou definir uma coisa que vai acontecer em 2027, hoje? Olha o que tem pela frente ainda, né? O tempo. Não sei nem se eu vou estar vivo.
Eu acho que é viver o momento. Eu já tenho coisas paralelas com o Sepultura. Tenho o De La Tierra, tenho o Kisser Klan, eu tenho o Pegadas de Andreas Kisser, que é o meu programa de rádio, eu tenho o movimento Mãe Triste, eu tenho o Patfest, onde a gente estimula as pessoas a falar de morte depois de todo o processo que eu tive com a minha esposa, que faleceu de câncer, o cuidado paliativo, todo esse processo de chamar atenção pra isso, né?
Então, eu vou me dedicar mais a isso também, a esses projetos, além de coisas novas. Eu quero fazer música nova, eu quero fazer música diferente. Eu não quero sair do Sepultura e fazer um som do Sepultura com gente diferente. Não tem sentido isso, entendeu? Eu quero fazer experimentos, eu quero usar mais o violão, eu quero trabalhar com outros artistas, não só musicais, mas pintores e poetas, enfim, exacerbar na arte mesmo, sabe? Fazer coisas mais desafiadoras.
Acho que o pior que pode acontecer pra um artista é ficar na zona de conforto, né? Entrar naquele ritmo, fazer outra turnê, fazer outro disco, e não sei o quê. Essa ideia de fazer outro processo desse estava meio que sufocando. Mano, pra quê? Pra quê que tem que fazer outro disco agora? Ah, só porque passou dois anos, três anos, não sei o quê, enfim.
A gente teve a pandemia no meio, mas, pô, o Quadra tem cinco anos, né? É um disco muito forte, um dos melhores discos da nossa carreira e abriu portas importantíssimas também. E é um disco muito atual, muito vivo. E a gente tá em outro momento, etc, né? Então, essa parada, esse respiro, vai dar espaço também para novas possibilidades que eu talvez não esteja nem percebendo agora, nesse momento.
Então, deixar o tempo correr, à medida que o futuro chegar, ele vai se tornar o presente e é ali que a gente vai fazer as decisões, né?
RIC.com.br: Você está desde 1987 no Sepultura. Como avalia sua trajetória até esse encerramento?
Andreas Kisser: A carreira de um músico nunca teve estabilidade, eu nunca tive salário. Uma hora entra uma grana, outra hora eu tô mesmo sem ganhar porr* nenhuma. Já tive momentos dificílimos, de família, de tudo, de manter tudo como um artista, uma hora é sucesso, outra hora não é, outra hora é positivo, outra hora é negativo, enfim. É a vida do artista, a gente vai aprendendo a lidar com isso, a lidar com o dinheiro de uma maneira diferente, que não é todo mês que tá caindo lá, você tem que organizar o seu dinheiro de uma maneira diferente, ver a coisa de quatro, cinco, seis, oito meses já em advance, né?
No futuro, pra se preparar pra isso, é só uma questão de preparo mesmo, de experiência, de viver, né? Você não aprende isso numa faculdade também, sabe? Aliás, a gente deveria ter um pouco mais de educação financeira, desde que a gente nasce, desde que a gente vai na escola, saber fazer um investimento, saber como é que funciona um banco, saber porque que cobra imposto, etc.
A gente não tem nada disso na nossa educação, e a gente vai aprendendo na porrada, vai aprendendo fazendo, e essas regras sempre estão mudando. Olha a história do Brasil, cruzeiro, cruzado novo, real, real velho, real futuro, real do espaço, cada hora é uma coisa, Plano Collor, chega lá, o cara tira toda a grana, meu pai, eu lembro, era moleque, lembro desse momento, do Plano Collor. E a gente sobrevive a tudo, mano, porque a gente vai se adaptando, vai aprendendo as novas regras, e vai fazendo acontecer.
Acho que a gente tem que ver de acordo com as possibilidades, e acho que como artista, buscar novos desafios, acho que eu tô jovem o suficiente pra buscar coisas novas, não ficar preso a uma imagem ou um personagem só porque eu tô nele há 40 anos, entendeu? Tipo, acho que muita gente se acomoda nisso, né, e fica fazendo isso pro resto da vida, tudo bem, não tô julgando, cada um faz o que quer, mas pra mim, acho que não ia funcionar dessa forma.
RIC.com.br: E qual o legado que o Sepultura trouxe para a música brasileira?
Andreas Kisser: Foi a minha história. E eu posso falar, eu não sei outra história, não sei outra vida, foi a minha vida, eu fiz aqui, com as consequências boas e ruins, aprendi com os tombos, enfim. E sempre acreditei nos sonhos, acreditei em mim, sempre me preparei, sempre estudei música, estudo música até hoje. Adoro estudar, adoro conhecer, adoro visitar lugar novo.
Esse é o espírito. Acho que a gente nunca ficou preocupado em fazer o hit do momento, ou se vender por uma certa tradição ou tendência do momento. Ah, faz música pra rádio, ah, não pode ter solo, ah, não pode gritar isso, não pode gritar aquilo. Quem falou isso, mano? Quem tá falando isso? E se a gente souber quem, quem se importa com esse quem? F*da-se, mano, que esse cara tá falando.
Que a Billboard, que a Rolling Stone, que a Casa do Caralh*, foda-se, mano. Esses caras dependem da música pra existir, mano. Se não tivesse nós, músicos, eles não teriam nada pra fazer, nada pra divulgar, nada, sabe? E o Sepultura nunca dependeu disso, mano. Nunca dependeu de capa de revista, nunca dependeu de top 1, nunca dependeu de jabá de rádio, porra nenhuma.
Nunca dependeu de governo, nunca tivemos uma Lei Rouanet, ao contrário do que muita gente fala aí, nunca tivemos apoio do governo pra trazer instrumento importado, não tivemos apoio de ninguém a não ser nosso e das nossas famílias, mais ninguém. E a gente agradece muito a isso, meu pai, a minha mãe, a mãe do Max, do Igor, do Paulo, do Eloy, do Jean Dolabella, todos que fizeram parte, do Derek Green, do Grayson. Famílias fantásticas, sabe, mano? Que acreditaram no nosso sonho e deram todas as condições pra que a gente pudesse seguir o nosso sonho.
O Sepultura é isso. O resto são consequências, tecnicalidades, etc. Ah, canta inglês, porque fez isso, porque fez aquilo. Não tem segredo, mano. O segredo é você ser honesto com você mesmo.
Fazer a arte pela arte, sabe, mano? E a gente, como eu disse aqui, passamos períodos bons e momentos financeiros, mas a arte sempre salvou. A música sempre salvou. Sempre uniu a família.
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