Quando recebi, à entrada, o jornal-programa de MÁQUINAFATZER, me explicaram que ali estava o roteiro -a ser lido após o espetáculo. Porque este seria falado em um dialeto inventado.

Esta montagem foi concebida a partir de trechos do autor alemão Bertolt Brecht, talvez o mais completo homem de teatro da história: autor, ator, diretor, poeta, escritor, criador de uma estética chamada Teatro DIALÉTICO, desenvolvedor de uma nova forma de representação para atores.  Brecht viveu entre as 2 grandes guerras mundiais. Na primeira, participou como estudante de Medicina: “cortando e colando pessoas” para que voltassem ao campo de batalha. Na segunda, exilou-se nos EUA, fugido da Alemanha Nazista. E, nos EUA, foi identificado como comunista.

Entro na plateia da Reitoria. O cenário, descentralizado no palco, uma estilizada peça de casa e seu entorno  A plateia se apaga e resta no palco um ambiente sombrio, entre luzes e sombras. Objetos rústicos, velhos, metal e madeira, em desalinho, em desequilíbrio. Nesse ambiente de pouca luz , todos os personagens são pardos, na pele, na barba, na roupa. Figuras de ambiente de guerra, se soldados não sei, se refugiados não sei. 3 feridos, enfaixados, em uma casa, atendidos por uma mulher jovem. O som é um insistente ruído grave, contínuo, por longo tempo.

Chega o quarto homem, talvez um estrangeiro, talvez um inimigo. A conversa é rude e em uma língua que desconheço. Um deles parece rir, não sei se é concordância ou deboche. Todos levantam o braço repetidas vezes, parecem concordar. A mulher serve uma espécie de sopa; o quarto homem a recusa e um dos outros passa a mão no rosto dela. A cena se repete, cada vez mais rápido – os dias passam iguais– nada se ilumina e aquela sensação de muito tempo e sempre a mesma tensão, não há Sol surgindo nem se pondo, apenas o escuro e percebo que os dias passam porque eles dormem. Nos cantos escuros e feito animais.

Seguido, momentos em que brigam, momentos em que cantam juntos um hino, momentos de cigarro e de bebida e grunhidos que não entendo. Em algum momento a mulher reclama com aquele que lhe passou a mão no rosto. Ele lhe dá um tapa, ela cai a seus pés, situação resolvida. Não há sentimento, não há humanidade ali.  A cena só se move por um longo sinal ao longe, como fosse aviso de ataque aéreo. A mulher se esconde em um minúsculo armário. O tempo frio continua passando. O quarto homem parte, em algum momento.  Quando retorna, já não sei se é o mesmo. Novos acordos, novos grunhidos, discussões ocasionais. A mulher enfaixa-lhe a cabeça ferida, ele grita dor contida.

Até aqui, já saíram cerca de 20 pessoas da plateia.

É noite agora, porque sei que todos dormem. A mulher deitada sobre a mesa – talvez para estar sozinha, não sei. O quarto homem lhe assobia, baixo. Ela shhhhhhhh… não quer acordar os outros. Ele insiste, e ela cede, vão lá fora e ele a agarra ela pouco resiste e fazem amor cachorro/cadela; os grunhidos do homem não são prazer, são toda a coisa contida que sai com o esperma. O macho termina o serviço e sai, quando alguns acordam com o ruido. A fêmea, nesse momento, levanta a saia e mostra a penugem ao mundo ; o homem que lhe deu o tapa aparece. Num único momento de aparente sentimento, esbraveja, chora, qualquer coisa assim. Enquanto isso a mulher vai se aninhar com cada um dos outros 2 homens na casa. Vingança? É uma vida animalesca.

Após essa cena, mais 15 pessoas saem da plateia.

E assim, segue… tudo muito lento… até que em algum momento ao longe se aproxima uma música que me lembra filme americano com canção alemã da primeira guerra. Eles vêm à frente da casa e se perfilam, como se uma câmera lhes fotografasse; abrem-se num único falso sorriso ; dançam; é tragicômico.  No mais, as coisas continuam como são. Lentas, sombrias. Tão lentas que, quando as luzes se apagam totalmente pela primeira vez, conto longos 22 segundos para que as primeiras palmas sejam ouvidas.

Isso é o que vi: guerra, sujeira, dor, desumanidade, desconfiança, desesperança já sem desespero, sobras e sombras, depressão, escuridão. Vi o que penso serem os conflitos no Oriente Médio. Vi o que penso sejam o que passam os imigrantes nos navios e os povos exilados nas regiões de guerra. Não vi soldados, vi um “nada a fazer” não tão beckettiano.

Se você me pergunta: era bem feito? Respondo que era excelente, o domínio e profundidade dos atores e da direção, da técnica, tudo perfeito. Perdi o senso de serem atores, me fizeram ultrapassar a linha entre realidade e ficção. Me fizeram, nessa mimesis particular, recortar realidade.

Se você me pergunta o que aprendi, o que me incomodei, uso a resposta de outro espectador: “vi o que vi – intenso – SENTI o que senti. E nada mais; nada que eu já não soubesse, nada que me mobilizasse.

Se você me pergunta a mesma coisa após ter lido o jornal-programa (com o roteiro e trechos de poemas do autor, Brecht, e trechos sobre a poética do grupo), digo que ENTENDI qual era a peça. O jornal-programa é, realmente, parte do espetáculo.

O que VI foi “o momento, o presente, a coisa” e o que LI foi o lugar e o significado dessa coisa no mundo. O jornal-programa me trouxe “as palavras, em minha lingua”, e com elas conceitos e o significado maior.

Uma experiência realmente diferente, como que em 2 campos cerebrais; sabe quando você junta uma cor e um som e, assim, se torna uma terceira coisa?

Sim, agora digo que estou de acordo.