O espetáculo paulista que ousou estrear de verdade no Festival de Curitiba – esse é dos meus! – é uma colcha de retalhos imundos e esteticamente provocantes.  Situado num submundo a la Plínio Marcos (personagens abaixo da linha da pobreza), debaixo de um viaduto, foca o universo de onde vem e para onde vão nossos – tais como os ratos – “irmãos” do dia-a-dia.

Mas a dramaturgia de Spon Spoff Spend não traça retratos psicológicos ou antropológicos, não  é para compreendermos a humanidade dessa ralé. Limita-se a  documentar esse ambiente, algo como convivendo ali e comendo também, com naturalidade, o pão com manteiga podre. Mostra as relações de poder e os sonhos de algumas figuras em seu direito de habitar a franja do que chamam de “mundo superior”.

PARA ENTENDER A COISA
A história contada é linear – e se não o fosse seria difícil acompanhá-la dado o número de efeitos estéticos. Os personagens: o mendigo-filósofo- com nome de grego e que, vezes durante o espetáculo, “delira” sobre a estrutura podre do poder que emana da aceitação/escolha de um povo que prefere ser subjugado ; o organizador do local – também nome de filósofo grego; a única; a única mulher, filha do mendigo-filósofo, entrando na idade adulta (pelo menos ao ver de quem ali a deseja); o carrinheiro Getúlio, que transita entre o “mundo superior” e a ralé – interessado pela mocinha; um mendigo negro, puro, apaixonado por ela e destituído de qualquer poder; os outros mendigos e um indispensável cachorro.

A trama: a moça diz ao pai querer casar, querer a proteção de um homem para sair do mundo imundo, e confessa a preferência pelo mendigo negro que lhe toca o coração. Quem a deseja, no entanto, é o poderoso carrinheiro Getúlio, que a induz a “casar-se” com ele e assim sanar a dívida do pai. Getúlio delira em voltar a ser Pastor e ganhar muita grana, mas para isso precisa de uma esposa com “cara de família”. Rejeitado pela menina, cumpre a ameaça de usá-la como prostituta para ampliar seus negócios. Enquanto isso, o mendigo negro e inseguro tem um lindo sonho de amor (a única cena lírica do espetáculo) amor no qual ele e a amada voam, ultrapassando juntos os limites do viaduto da pobreza. Paralelamente, uma equipe de filmagem está na região para realizar ficção baseada em uma cidade onde só existiriam mendigos. Nessa filmagem, os  atores/personagens – cujos nomes são iguais aos dos mendigos – usam figurino greco-romano-renascentista-lixeiro. E por aí vai a história.

A dramaturgia textual está intrinsecamente ligada à da forma, e é essa a que “salta aos olhos” no espetáculo: de início, o grupo se apresenta com longa percussão mesclada entre instrumentos e objetos do lixo, seguida de cantoria à plateia, na qual se destaca “O que que você tem?/ o que é que você tem?/ o que é que você pode me dar?”.  Os figurinos e o cenário mesclam arte e lixo. Os diálogos são coloquiais, mas em linguagem erudita – nada de mendiquês.                  

Ou seja, anuncia-se um musical a la Brecht.

Mas isso é só o começo. Porque Spon Spoff Spend será temperado por uma linguagem clássica entre o grego e o renascentista, pelos recursos de  vídeo ao vivo, pelo uso de maquetes,  bonecos e teatro de sombras. Aliás, poucas vezes vi tais recursos tão bem usados como teatro, não “emprestados” mas sim transformados em linguagem teatral, absorvidos por ela.  É sensacional a cena de meta-cinema, mesclando a filmagem da atriz com a dos bonecos manipulados na maquete.

Uma referência importante: o grupo Marácujá Laboratório de Artes – premiado por sua produção em teatro infantil –  usa nessa sua primeira peça adulta os recursos desenvolvidos ao longo de seus 10 anos de existência.

MENDIGOS NA GÊNESE E NA PLATEIA
E se dispôs ao risco: na estreia nacional no FTC, a direção aceitou o desafio proposto pela estudante de Artes Cênicas Júlia de Campos Moura em levar 14 moradores de rua para primeira fila. Imagine o leitor a tensão de uma estreia nacional em um festival de renome, acrescentado o risco de “participações espontâneas”.  E foi o que aconteceu: mendigo dialogando com os atores, mendigo se emocionando ao se ver retratado, mendigo fazendo espectadores se retirarem revoltados e mendigo sendo aplaudido de pé.

Spon Spoff Spend  surgiu a partir das ideias do também ator, produtor e criador Sidnei Caria – com histórico de voluntariados com comunidades carentes. Resulta em espetáculo de grupo jovem e pulsante e com experimentações que nos podem levar a novos usos da linguagem cênica. Fica difícil fazer qualquer tipo de crítica no sentido de “certo ou errado” ou “deu certo ou deu errado” sem parecer pretensiosa. Mas vá lá, vou arriscar.

DOIS COMENTÁRIOS
Acredito que o espetáculo em nada perderia se o texto fosse falado e interpretado em mendiquês. Porque todo o tempero estético já mantém o espectador distanciado e crítico. E, ao interpretar o “grupo de cinema”, também sugiro algo mais sóbrio, não tão clichê/caricato. Tais recursos chamam à superficialidade.  Creio que o espectador, assim livre deles, mergulharia mais em toda a proposta estético-ideológica. Quem sabe isso ocorra no Teatro doa Parlapatões. Se for, quero ver.

A uma amiga que disse achar “a dramaturgia algo confusa”, respondi: “é desses espetáculos que – para sentir o impacto –  você precisa deixar passar um dia ou dois. As informações precisam dar “aquela cozinhada dentro da gente”. Tanto que esta crítica teve que esperar até a manhã seguinte.

Ao sair do teatro e percorrer as ruas em minha moto, ontem, atentei para uma série de mendigos perambulando: inclusive um deles carregava num carrinho um colchão velho,  semelhante ao usado na peça. É… já não eram mais os mesmos mendigos de sempre.

Fica, por fim, o que lembro do diálogo entre a equipe de cinema e os mendigos:

– “A gente poderia usar seu lugar aí para filmar?”

– E a gente poderia usar a casa de vocês pra comer?”

Por hoje é isso. Se tem dúvidas e curiosidades sobre Teatro, atuação ao vivo e para câmera, clown, expressão, locução, oratória e bichos semelhantes, falem comigo. Se não souber, indico quem saiba. Me procurem no Facebook!