Vale destacar a excelente apresentação do Vocal Brasileirão, na terceira semana de novembro, com o espetáculo Estandartes do Constestado, baseado na obra épico-poética de Romário Borelli. Com direção (e a presença em palco) do autor e (a excelente) direção musical de Vicente Ribeiro, o espetáculo é um desses raros encontros entre música, poesia e teatro político, coisa que eu não via desde a década de 1980 com as tão conhecidas obras de Chico Buarque de Hollanda. Com dois detalhes importantes, porém: fala daqui, do nosso quintal, coloca à luz um dos episódios mais importantes (e pouco falados) de nossa história e, mais que nunca, atual, e resgata a obra deste grande poeta, músico, homem de teatro e historiador que é Borelli.
Escrevo esta matéria também para que vocês, leitores, fiquem antenados para as próximas apresentações, tanto do Vocal Brasileirão quanto deste show. O vocal deverá estar em janeiro na Oficina de Música de Curitiba, com Ivan Lins. E está previsto o lançamento de um CD do Estandartes do Contestado, com capa do ótimo Elifas Andreato, tão reconhecido por seus cartazes de teatro desde a década de 1970. Para mim (e para muitos) deveria ser lançado sim um DVD, tal a beleza do espetáculo, que destaca, aliás, a sensível iluminação de Nádia Luciani.
O Vocal Brasileirão é um desses grupos ímpares, que consegue aliar a excelente qualidade musical à performance cênica. Sua trajetória é marcada por shows temáticos e sempre evoluindo no contato com diferentes parceiros, entre compositores e diretores teatrais. O que conferiu ao elenco – sem que se perca a sua marca personal – uma riqueza expressiva pouco vista em grupos do gênero no Brasil.
A opção por este musical levou o autor a sintetizar o texto teatral usado como base, já montado tantas vezes no Paraná. Para mim esta síntese não tirou o vigor, pelo contrário: foi como se “se lapidasse a pedra bruta, tornando-a mais preciosa”. A forma do show é “pobre” e é esta simplicidade de recursos que potencializa o andamento, as variações poéticas, a inteligência das marcações, cada detalhe de arranjo e cada solo dos intérpretes. Enfim, é a aridez de recursos que faz mergulhar na profundidade do tema.
Quando as primeiras luzes se acendem, ainda na penumbra, a entrada decidida dos músicos e do elenco já revela uma carga de paixão. Quando se ouve os primeiros acordes, depois, as vozes, e depois das vozes o brilho no olhar, está claro que teremos um show diferenciado. Carregado da ideia de “se queres ser universal, canta a tua tribo”, ouvimos um cantar enlameado de raiz. Joga à plateia essa coisa que nos faz sentirmos inteiros, vitais em nossa condição, a certeza da vida acontecer aqui, e não lá fora, lá no reino da internet, lá em qualquer lugar. O show nos salva. E, quando começa a soar a poesia na voz de Borelli, a alma se lava. Poesia épica, um Brecht braslieiro. E longa vida a esta parceria!
Abaixo, uma breve entrevista com o autor:
Fernando Klug- Como nasceu a ideia deste show e quais foram os responsáveis por levá-la adiante? BORELLI – Eu sempre queria “regravar” o disco com as músicas da peça (O Contestado) lançada no Teatro Guaíra em 1979. Na ocasião, tivemos que fazer tudo muito às pressas para lançar o disco no dia da estréia. . Recentemente, conhecendo o Vicente Ribeiro através de um outro trabalho, constatei seu potencial. Convidei-o, mostrei as músicas, fiz uma apresentação para o Vocal Brasileirão e eles se encantaram. Partimos para o disco, show, etc. Dei o nome de Estandartes do Contestado.
Fernando Klug – Quais as dificuldades que vcs enfrentaram, e quais as “benesses” do caminho?
BORELLI – Algumas das músicas tem uma harmonia muito complicada e precisávamos de gente com alto profissionalismo. Músicos de primeira. As dificuldades aconteceram antes de eu conhecer o Brasileirão e o Vicente. Em algumas das montagens da peça não se achava gente para tocar as músicas. Pecas com 18/ 20 acordes às vêzes eram executadas com apenas quatro, imagine. Isso acabava com minha música. Mas agora, com o Vicente e esses músicos de alta competência ,tudo fluiu naturalmente, e as músicas, como você viu, ficaram lindas. Outrra dificuldade é que não temos apoio de fora. A produção é minha. Ninguém quer produzir uma coisa dessas, nem governo e muito menos empresários. Mas isso não me preocupa, minha empresa, Orion Produções Culturais, está preparada para levar a coisa adiante sozinha. Isso é bom, fico longe de Governo, de políticos.
Fernando Klug – O que significa este show, para você, e qual a continuidade que pretende dar a ele?
BORELLI- É a síntese de um trabalho amadurecido durante 41 anos. Lancei a peça em 1972, durante a ditadura. Havia muitos cortes da censura. de lá para cá houve 24 montagens. É a peça mais montada no sul do Brasil. Grande parte desse trabalho foi feito nas universidades. Esse é o meu público. Durante cinco anos a peça entrou no curso de doutorado da ECA- USP. Com esse trabalho pretendo fazer um grande circuito nacional, coisa que tenho feito até agora sozinho com meu violão e minha viola. Com essa gente toda é mais fácil.
Fernando Klug – Qual a importância de obras como essa no panorama atual das artes locais?
BORELLI – Antes mais nada trata-se de nossa história. A história do Contestado foi enfiada embaixo do tapete. As elites econômicas e os políticos (ou seja todos que estão no mesmo saco), não tem interesse que se conte a verdade. Os responsáveis pelo crime que se fez contra o caboclo paranaense e catarinense que morava no Contestado, hoje são nome de rua, são heróis do estado. No entanto venderam o estado e o Brasil. É um trabalho, como você viu, de raiz em todos os sentidos. Essa é sua importância. Infelizmente não temos mais um teatro que sirva para desenvolver a consciência crítica como era o Arena, Opinião, Vianinha, etc. Como era o Teatro de Brecht e muitas vêzes o próprio teatro grego. Vivemos num mundo alienado, com uma literatura e uma poesia em geral pobres. Quando alguém puxa pela razão e pela emoção as pessoas desabam. Nestes três dias vi dezenas de pessoas que choraram diante de nosso trabalho. O velho Brecht que me desculpe mas estamos precisando mesmo é de uma boa catarse. Talvez das lágrimas possa nascer alguma coisa, pois não estamos fazendo uma soap-opera melodramática.