Reinaldo Bessa
Vila Caiuá, Cidade Industrial de Curitiba. Numa apertada casa da Cohab viviam o casal Tânia Regina e Marcos Luiz Casagrande e os dois filhos pequenos, Marcos e Camila. Os irmãos, com dois anos de diferença, dividiam o minúsculo quarto, onde mal cabia o beliche em que dormiam. A casa só era grande no sobrenome da família. Sem armário, ela deixava suas roupas empilhadas ao lado da cama.
Os dias eram divididos entre a escola e as intermináveis brincadeiras na rua com a piazada da vila encravada em uma das regiões mais populosas e pobres da cidade, apesar das fumegantes chaminés das indústrias vizinhas. O pai ganhava a vida como caminhoneiro autônomo enquanto a mãe era faxineira de um Centro de Educação Infantil da prefeitura ou, como a filha a define com orgulho, a “tia da limpeza”.
Camila morou lá até os 25 anos. “Era muito feliz, subia em árvore, poste. Era bem moleca e só ia pra casa pra jantar”, relembra a fundadora e CEO do Instituto Incanto, Camila Casagrande, com recém-completados 30 anos e muita experiência de vida acumulada. Algumas dolorosas, mas que ela soube driblar com altivez.
Solteira, Camila brinca que tem 130 filhos referindo-se às crianças e jovens que frequentam regularmente o instituto instalado em um amplo imóvel nos confins do bairro Santa Quitéria. Ali, num terreno cercado por muros coloridos com campinho de futebol, quintal, horta e várias salas, crianças e jovens das favelas Portelinha e Jardim Santos Andrade participam de atividades no contraturno escolar de segunda a sexta-feira. Fora as que são enviadas por ONGs parceiras. Somando tudo, são quase 400 almas ávidas por oportunidades.
Enquanto meninos disputavam a bola acirradamente no dia do jogo Argentina e Croácia pela Copa do Mundo, um grupo de meninas ensaiava passos de dança de hip hop em uma sala. Camila entra e as cumprimenta. Ao ver uma das garotas procurando uma música no computador, ela adverte: “Não tem palavrão, né?”. Durante o tour que fez para me mostrar as dependências ganhava abraços e sorrisos das crianças. São as vidas que ela impacta com sua ONG, nascida de um sonho dela ainda adolescente.
Camila, hoje empreendedora social reconhecida por seu trabalho junto a comunidades vulneráveis de Curitiba, comanda uma equipe de 20 pessoas. Apesar do parentesco com a palavra encanto, o nome de batismo da ONG tem outro significado: Instituto de Cultura, Arte e Novas Tecnologias. Além dos pequenos, o instituto impacta também a vida de suas famílias com programas de qualificação profissional.
Quando a mãe a transferiu para o colégio estadual Dom Orione, no mesmo Santa Quitéria, ela se preparava para cursar a 5ª série do ensino fundamental. Com 14 anos conseguiu um estágio na Caixa Econômica Federal, no distante Hauer. Os deslocamentos eram feitos de ônibus. Um ano depois foi estudar no Colégio Lysímaco Ferreira da Costa, na Avenida Iguaçu. Ela não imaginava o que aquele prédio histórico lhe reservava.
Convidada a participar da semana cultural da escola, topou na hora por uma razão: os participantes não precisavam assistir às aulas. O convite era para se apresentar num grupo de dança de hip hop. “Não tinha a menor ideia do que era dança ou arte. Só queria matar aula”, conta. Ao final da apresentação para colegas, pais e professores, o auditório veio abaixo em aplausos e gritos. Extasiada com a estreia pomposa, Camila pensou enquanto agradecia as palmas. “Por que isso está acontecendo só agora comigo, com 15 anos?”. Dias depois procurou a diretora da antiga escola e lhe propôs criar um grupo de dança com aulas aos sábados. Para ajudá-la com as aulas, convidou os colegas com quem já dançava.
Depois de dois anos trocou a Caixa por uma loja de roupas femininas no Centro de Curitiba. E avisou o novo patrão que aos sábados pela manhã tinha que entrar mais tarde porque dava aulas de dança numa escola pública. Ainda teve fôlego para ensinar hip hop para as crianças do orfanato Lar Batista Esperança, no Bom Retiro, aos domingos. Escolheu esse dia porque a tarifa do ônibus era de apenas R$ 1, que cabia no seu orçamento. Quase um ano depois, já com 17 anos, tinha concluído o Ensino Médio e sonhava com a faculdade de dança. Não passou da primeira fase na FAP. Teimosa, matriculou-se no balé para se aprimorar. Assim como os passos, o dinheiro também era contado.
Em 2012, arrumou um estágio na área de eventos do Grupo Positivo, onde diz que começou a formar sua bagagem profissional. Foi nesse período que decidiu criar uma escola de dança com finalidade social. Aplicou tudo o que aprendeu no novo emprego no projeto de fazer da dança uma porta de saída da indiferença social para muitas crianças da periferia da cidade.
Recebeu um convite para se apresentar com seu grupo no Teatro Regina Vogue, no Shopping Estação. Foi com a cara e a coragem. Lá conheceu o professor de dança Eladio Prados, que viu potencial nela e resolveu ajudála. Ganhou uma bolsa e um tempo depois virou funcionária da escola. Tinha que se virar nos trinta para dar conta de tudo, tantas eram as atividades com que estava envolvida. E tudo feito de ônibus numa época em que a palavra Uber nem sequer existia. Andar de táxi era um luxo.
Em 2016 trocou o trabalho na escola de Eladio pelos restaurantes Victor, onde assumiu o setor de captação de eventos. Concluída a faculdade de Publicidade e Propaganda, matriculou-se em duas pós-graduações, em produção de arte e gestão da cultura, na PUC, e num MBA em dança. Seu Trabalho de Conclusão de Curso do MBA foi um modelo de escola de dança social.
O Instituto Incanto surgiu em setembro de 2017. Entre idas e vindas burocráticas, que ela chama de perrengues, estruturou o tão sonhado projeto de ensinar dança a crianças e jovens carentes. Mesmo não tendo um teto para chamar de seu como empreendedora social, o que só aconteceu em 2020. Buscou pessoas que entendiam tudo do Terceiro Setor para auxiliá-la no dia a dia. Até que em 2019 entrou para o programa de aceleração do Instituto Legado, que já lhe dera uma bolsa de estudos em empreendedorismo social.
Uma noite, assistindo ao programa Conversa com Bial, soube da existência da poderosa ONG paulista Gerando Falcões, fundada por Edu Lira, filho de uma doméstica e de um ex-assaltante de bancos. Foi atrás e se inscreveu no programa de aceleração da organização paulista. Camila fez um estágio de um semestre na Falcons University, uma espécie de universidade da favela criada por Lira, reconhecido e respeitado empreendedor social do país. Ao concluir a formação, ela apresentou à banca da instituição o projeto do Incanto.
Dali em diante tudo fluiu como ela esperava e desejava. Hoje, o instituto recebe o apoio de empresas – entre elas uma grife internacional de luxo – e de empresários que veem nela uma pessoa capacitada para impactar a vida de centenas de crianças de Curitiba e região. Tudo como ela sempre sonhou. A menina rueira do Caiuá foi longe, mesmo sem sair de perto de casa. Palmas eternas para Camila!
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