A médica curitibana Mariângela Batista Galvão Simão, diretora-geral adjunta para Medicamentos e Produtos Farmacêuticos da Organização Mundial da Saúde, é a personagem da coluna de Reinaldo Bessa para a edição de março da revista Pinó, da Gazeta do Povo.
Reinaldo Bessa
As bucólicas ruas do Rebouças eram o lugar preferido da menina Mariângela Batista Galvão. Quando não estava circulando de bicicleta pelas imediações da Igreja do Sagrado Coração de Maria podia ser encontrada na piscina da Praça Ouvidor Pardinho nos raros dias quentes de então. Daquela época ela ainda se lembra do cheiro de café deixado pelos caminhões carregados de sacas que passavam pela Avenida Getúlio Vargas, onde morava, em direção ao Porto de Paranaguá.
A garota de bem com a vida não imaginava que, décadas depois, viria a ocupar posição de destaque na Organização Mundial da Saúde (OMS) em meio a uma pandemia que ceifou a vida de milhões de pessoas em todo o mundo. Diretora-geral adjunta para Medicamentos e Produtos Farmacêuticos da organização sediada em Genebra, na Suíça, Mariângela Batista Galvão Simão, 66 anos, esteve em Curitiba discretamente na segunda semana de fevereiro para rever a família. O máximo de exposição que se permitiu foi uma palestra para a equipe da Secretaria Municipal da Saúde, a convite da secretária Márcia Huçulak, de quem foi chefe quando trabalhou na prefeitura de Curitiba. De resto, isolou-se na chácara da família em São José dos Pinhais, de onde só saiu para coisas prosaicas como fazer as unhas e comer pastel na feira livre do Juvevê, onde morou antes de se mudar para Genebra, além de visitar o Elias, dono da tradicional banca de frutas e verduras do bairro.
Da última vez que esteve na cidade e passou por lá, um ano e meio atrás, ele lhe deu uma missão: entregar ao diretor-geral da OMS, Tedros Adhanon, um calendário de 2020 do estabelecimento com a recomendação expressa: “Diga ao Tedros que é um presente meu”, relembra achando graça da maneira informal como o comerciante tratou seu chefe. Mariângela não só o entregou como fez uma selfie com Adhanon segurando a folhinha da banca do Elias e a enviou ao amigo como prova de que cumprira o prometido.
Viúva há quatro anos do historiador e professor Antônio Simão Neto, ela tem dois filhos, um neto, Antonio, e outra a caminho, Maria Lua. Um dos filhos, farmacêutico, mora na Finlândia, e outro, jornalista, em Portugal. Filha da professora Maria Batista Galvão e do empresário Nelson Torres Galvão (ambos já falecidos), Mariângela nasceu na Maternidade Victor Ferreira do Amaral. É a quarta dos cinco filhos – quatro mulheres e um homem – e a única médica da família. O pai, militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro), foi proprietário da Imobiliária Galvão, hoje administrada pelos irmãos e sobrinhos. Mariângela diz que sempre tinha gente do partido dormindo em cima da garagem de sua casa ou almoçando por lá.
Nelson Galvão foi preso em 1964 com a chegada dos militares ao poder. Foi um homem admirado na cidade e querido pelos funcionários. Sua simpatia pelo comunismo não impediu que tivesse vínculos com a classe empresarial local e circulasse pelos salões sociais. “Mais tarde acho que ele continuou só de esquerda”, diz Mariângela, que seguiu a linha ideológica do pai e se filiou ao PT, do qual se desligou no final da década de 1990 por questões de ordem pessoal. “Aprendi que nem tudo é preto no branco, que tem conservadores com princípios e pessoas de esquerda sem princípios”, diz. Conta que admirava o sogro, “uma pessoa conservadora”.
Sobre a política no Brasil, acha que o país entrou na onda conservadora que atingiu vários lugares do mundo e diz que não tem votado nas últimas eleições. Para ela, houve um crescimento do movimento anticiência, inclusive em países dirigidos por partidos de esquerda, como México e Tanzânia. “O negacionismo não é atributo exclusivo da direita”, fala. E acrescenta que a polarização em torno da vacina, que opõe quem quer e quem não quer tomá-la, não interessa à saúde pública.
É difícil falar com essa curitibana sem que o tema saúde esteja presente na conversa. Formada em Medicina pela Universidade Federal do Paraná, fez residência em pediatria no Hospital da Cruz Vermelha e especializou-se em Saúde Pública (pediatria e sanitarismo) na Faculdade Evangélica. Fez o ensino fundamental no tradicional Instituto de Educação do Paraná, na época em que sua mãe lecionava na escola, e o médio no Colégio Estadual do Paraná. Morou um tempo em Maringá quando o marido foi lecionar na Universidade Estadual da cidade. Trabalhou na Secretaria Municipal da Saúde por quatro anos até voltarem para Curitiba, em 1985.
Prestou concurso para a prefeitura e para o Estado e, desde então, ocupou diversos cargos de direção na área da saúde nas esferas municipal e estadual. Um deles foi como diretora de Assistência à Saúde na gestão do então pedetista Jaime Lerner, que voltou à prefeitura de Curitiba em meteóricos 12 dias de campanha com o apoio de Leonel Brizola. Quando atuou no Estado e, mais tarde, no Ministério da Saúde, Mariângela focou seu trabalho na municipalização dos serviços de saúde e na estruturação do SUS, tema sobre o qual fala com paixão. Sua passagem pelo governo federal se deu de 2004 a 2010 durante os dois mandatos de Lula. Já não estava mais filiada ao Partido dos Trabalhadores. Chegou lá amparada em sua competência técnica. “Minha carreira no Brasil foi fortemente baseada na estruturação do SUS”, diz.
A OMS entrou na vida da curitibana em setembro de 2017, quando ela já estava morando em Genebra e o etíope Tedros Adhanon foi eleito para presidi-la. Mariângela foi indicada pelo governo Temer. Assim como os outros nove diretores-gerais adjuntos, ela é contratada da entidade. Os contratos são de dois anos e o dela acaba de ser renovado, sinal de que está fazendo um bom trabalho no momento mais ruidoso da história da OMS. Ao ser questionada se acredita ter chance de ocupar a principal cadeira da Organização, desconversa com elegância: “Isso é coisa para gente mais jovem”.
É impossível conversar com Mariângela Simão e não falar de pandemia, de vacinas, de saúde pública. Para ela, a marca da pandemia de Covid-19 é a iniquidade do acesso às terapias. “A desigualdade é uma vergonha. Meu chefe diz que é um ultraje moral”, afirma. Segundo ela, a OMS está fazendo todos os esforços para que todos os países atinjam 70% de cober- tura de vacinas. No dia em que conversou com a Pinó, o mundo havia atingido a marca de 11 bilhões de doses aplicadas. “Nenhum país cobriu totalmente a sua população”, fala. Para ela, a variante ômicron está substituindo a delta com muita rapidez, embora diga ser menos agressiva. E lembra que estamos fadados a ser uma sociedade de mascarados por um bom tempo ao dizer que é preciso continuar usando máscara em locais públicos, além de lavar as mãos com frequência. “Vamos conviver com isso mais um tempo até termos uma nova geração de vacinas para impedir que as pessoas morram. As vacinas são extremamente importantes agora”, diz.
E se derrama em elogios a Curitiba na condução da pandemia. “Curitiba estava melhor preparada do que muitas cidades, mesmo com todos os problemas. Foi um dos melhores desempenhos no Brasil”, depõe a vice-chefona da OMS. A cidade continua sendo seu lugar no mundo. “Meu DNA profissional é daqui”, declara a curitibana a quem cabe ajudar a decidir a melhor estratégia para vencermos a guerra contra a pandemia que interrompeu abraços, beijos, apertos de mãos e colocou a humanidade de joe- lhos. Ela não pegou Covid. E mesmo que tivesse pegado, seu olfato afetivo não teria apagado o cheiro de café do Norte do Paraná impregnado na memória da infância passada nas ruas do Rebouças.
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