Giovana Madalosso faz do coronavírus o personagem de seu novo conto

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Reinaldo Bessa

A escritora Giovana Madalosso publicou um conto sobre o coronavírus na edição da revista Época que começou a circular no último fim de semana. O texto faz parte de uma sessão especial da revista sobre a Covid-19. Curitibana radicada em São Paulo, ela está cumprindo a quarentena com a filha Eva na casa dos pais, em Santa Felicidade.

E está aproveitando o período de isolamento para escrever novos contos, alguns deles relacionados à pandemia, segundo disse ao portal. Desde que se lançou como escritora, Giovana vem conquistando prestígio no meio literário do país com seus livros, todos bem acolhidos pela crítica. O último, “Tudo pode ser roubado”, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. Leia abaixo.

E o coronavírus vos declara marido e mulher

Giovana Madalosso

Giovana Madalosso faz do coronavírus o personagem de seu novo conto
Casais juntos durante a quarentena para evitar a propagação do coronavírus. (Foto: Justin Paget/Reprodução Revista Época)

Era março deste ano. Eu seguia imune pela minha vida amorosa. O casamento não me pegou nem quando me apaixonei pelo meu companheiro, há seis anos, quem diria agora. Não morar junto foi um acordo que fizemos no começo. Já tínhamos nos casado e separado, estávamos bem assim. Há anos eu vivia com minha filha, e ele com seus filhos, em apartamentos regidos pelas manias incontornáveis de solitários acima de quarenta anos.

Às vezes, cogitávamos juntar as tralhas, mas era só ele ir ao meu banheiro e encontrar a toalha toda embolada no box que desistia. Ou eu ir ao banheiro dele, onde tinha que alinhar o tapete com a régua, para desencanar também. Além disso, tinham todos os casamentos para lá da janela. Depois de anos de relação, ainda fazíamos sexo, e isso era um indício de que nosso método ia bem.

No dia 17 de março de 2020, uma terça-feira, fomos impactados pelo avanço do Covid-19 e chegamos à conclusão de que precisaríamos nos isolar totalmente das pessoas, evitando inclusive idas e vindas entre nossas casas. Às dezoito horas do mesmo dia, sem que sequer percebêssemos, contraímos matrimônio. Meu dote, o apartamento. O dele, ainda mais suntuoso, dezesseis rolos de papel higiênico e duas garrafas de álcool gel. A cerimônia foi embalada por uma orquestra de panelas e pela marcha fúnebre da primeira morte por coronavírus no país.

Os filhos dele não puderam testemunhar a união, já haviam entrado em quarentena na casa da mãe. Nossa lua-de-mel foi inesquecível: tiramos toda roupa do corpo em menos de um minuto e nos metemos juntos no chuveiro – tínhamos acabado de descobrir que o Covid permanece vivo por horas também em tecidos.

Diariamente, levantamos da mesma cama e sentamos na mesma mesa, onde agora trabalhamos juntos, cada um no seu computador. As esquisitices que eu vinha escondendo há anos foram descobertas. Agora ele sabe que quando fico ansiosa enrolo recibos de papel e seguro entre os dedos como se fossem cigarros. Às vezes tento largar o Cielo comendo cenouras, uma compulsão que incomoda meu companheiro, que descobri ser mais ranzinza do que eu imaginava.

Minha filha atira brinquedos pelo ar, chora por atenção, a pilha de louças cresce, ninguém quer lavar a roupa. Tenho a sensação de que avançamos quarenta anos em quatro dias. Já entramos em crise, já superamos a crise, já somos dois velhinhos tomando vitaminas e se preocupando quando o outro tosse.

Um dia tomei um porre, precisava espairecer a tristeza que venho sentindo pelo virótico e abandonado Brasil. A vodca me fez tocar aquele tradicional foda-se para tudo. Anunciei que ia sair, que ia para um bar, dividiria cigarros de verdade com estranhos, viveria até a última gota o pré-apocalipse. Quem me arrancou do elevador e me trouxe para o apartamento foi o meu companheiro.

Em outra manhã, não tive coragem de trazer o jornal impresso para dentro. Sentei no hall do prédio, de pijama, cabelos desgrenhados e álcool gel para fazer a leitura. Sem que eu sentisse, minha filha se aproximou e colou o rosto atrás do jornal para me fazer uma surpresa. Você vai morrer, gritei. Ela se assustou e chorou, choramos juntas. Quem veio nos resgatar foi o meu companheiro.

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A marcha fúnebre nunca parou de tocar. Na verdade, está só começando, e sei que ganhará outros elementos: sopro de convalescentes, prantos, metais revolvendo covas, panelaços graves e agudos, talvez o estalar de coturnos em um possível estado de sítio.

Às vezes, para me acalmar, tento esquecer um pouco os barulhos de fora e me concentrar nos ruídos de dentro. As portas têm rangido mais, cebolas que não cortei estalam na panela, as descargas às vezes cantam simultaneamente em dois banheiros, pipocas estouram sem aviso meio da tarde, minha filha dá risada e não é das piadas na tevê. Não sei se meu casamento vai durar para sempre, mas não importa. Está bom assim, e eu tão pouco durarei.

Giovana Madalosso faz do coronavírus o personagem de seu novo conto
A escritora Giovana Madalosso. (Foto: Renato Parada/Divulgação)

Giovana Madalosso é escritora. Seu último livro, Tudo pode ser roubado (Todavia), foi finalista do prêmio São Paulo de Literatura.

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