Caco Galhardo lança luxuosa antologia das suas neuróticas tiras em quadrinhos
Vinte e dois anos fazendo tiras diárias de quadrinhos dá um pouco mais de oito mil dias. Ok, o nome do nome livro do cartunista Caco Galhardo pode até ser uma hipérbole um tanto inflacionada, mas quem se importa? O exagerado serve como ponto dramático para contrastar com o riso que rola frouxo ao folhear as 352 páginas de sua primeira antologia de HQs.
Caco esteve em Curitiba na semana passada para ministrar em três dias uma oficina de HQ na Biblioteca Pública do Paraná. Aproveitou a ocasião para lançar Cinco Mil Anos e Quase Todas as Tiras (Cia. das Letras) em uma noite de autógrafos e bate-papo na Itiban, o grande templo local dedicado à arte sequencial. Antes do evento, ele bateu um papo com o Ric Mais sobre o luxuoso livro, que marca o encerramento do primeiro e longo ciclo como quadrinista revelado por uma geração que seguiu os passos dos ídolos antecessores (Laerte, Angeli, Glauco) e estabeleceu nomes igualmente de peso como Fernando Gonsales, Adão Iturrusgarai, Allan Sieber e o próprio Galhardo.
Ideia da antologia
“Eu já estava havia muitos anos sem lançar um trabalho literário autoral. Enquanto isso eu via um buraco se acumulando entre tudo o que eu já havia produzido de tiras em quadrinhos para jornal. Vinte e dois anos fazendo esse trabalho… Percebi que já havia passado a hora de lançar isso em livro. Daí procurei a Cia. Das Letras com esta ideia e eles aceitaram prontamente. Não só aceitaram como fizeram uma edição bastante caprichada, com capa envolta por pôster e tratamento gráfico de muito luxo e cuidado.”
Curadoria das tiras
“De início eu pensei em lançar algo que compreendesse todo o meu trabalho. Um livro de, sei lá, 600 páginas. Mas 600 páginas já é um tijolo consistente. Como a ideia era inviável financeiramente porque iria encarecer muito o produto final. Então eu mesmo fiz uma pré-seleção de tudo que estava perdido entre tiras, cartuns e HQ soltas que andei fazendo por aí. Mas como tudo estava caótico, também fiz algo bagunçado, que não estabelecesse muita ordem. Por isso não segui cronologia, mas separei pequenos capítulos por personagens. Só que o tamanho destas divisões também não é igual, depende da importância de cada personagem. Para mim, Lili a Ex e Chico Bacon são exemplos de personagens importantes.”
Diversos universos
“Produzir tiras em quadrinhos no Brasil é um exercício de extrema liberdade para quem cria. É diferente dos Estados Unidos, por exemplo. Lá se você cria e emplaca um Garfield ou um Snoopy tem de ficar fazendo isso a vida inteira. Aqui, não. Não existe esta restrição por parte de quem publica, os jornais não estão aí se você muda o personagem de acordo com as mudanças de sua vida. Em consequência o desenhista não tem esse apego todo a ele. Também considero o trabalho diário das tiras algo muito intuitivo. São três quadrinhos e só. Você não precisa saber muito sobre o personagem, origens e explicações em torno dele. Eu comecei fazendo Os Pescoçudos, onde não havia personagens fixos. Depois fiquei fazendo uma mistura de tipos fixos. Entre os que mais duraram estão o Chico Bacon e Lili a Ex. O primeiro por ser alguém totalmente sem filtro, bastante libertário e com aquele supergo. Estava passando uma fase da vida em que eu precisava me expressar deste jeito. Já a Lili foi inspirada por diversas amigas que estavam se separando e ainda obcecadas com o ex. Bom, eu sou paulistano, vivo diariamente no hospício que é essa cidade. Então as neuroses da vida de cada um, que já viraram coisas normais, servem de combustível. O trabalho em demasia, os remédios, o analista, os relacionamentos complicados, a confusão de uma grande cidade. Todo mundo anda meio louco ou deprimido. Eu mesmo viro a minha própria piada.”
Os Pescoçudos
“Tive uma sorte imensa em ser chamado pela Folha de S. Paulo ainda bem jovem para produzir esta série de tiras em 1997. Quando me dei conta estava lá meu nome no jornal, dividindo espaço com grandes como Angeli, Glauco e Laerte. Os Pescoçudos são aqueles tipos contorcidos, que olham só para cima e não veem ninguém pela frente. Na época o mundo estava uma porcaria, ninguém se enxergava. Mas acho que hoje está tudo bem pior, só que em vez de olhar para cima as pessoas estão todas literalmente voltadas para o próprio umbigo. Ninguém larga o seu celular e enxerga o outro na frente. Acho que está na hora de voltar com Os Pescoçudos. Só que agora todo mundo olhando para baixo.”
Frente de trabalho
“Eu nunca tive qualquer frente de trabalho, nunca fiz histórias a mais para estocar para usar mais para frente. Fazer tiras em quadrinhos é uma espécie de escravidão. Considero desenhar algo igual a comer, o que você precisa fazer isso todo dia. Até pode tentar adiantar um pouquinho, mas não pode deixar de fazer isso. Mesmo porque a gente vira uma espécie de cronista do dia a dia. Faz uma síntese de algo com um espaço mínimo de três tempos. Entre os temas também acaba entrando uma veia política. Aliás o Brasil tem uma linhagem rica de ilustrados politizados, como Henfil, Millôr, Ziraldo e Jaguar. Aliás falo sempre que o cartunista é uma pessoa movida a vingança. Começa bem cedo, na infância e na adolescência. Você sempre faz um desenho zoando do professor na escola. Depois passa para a família e o círculo de amigos. E continua até perder todos os laços afetivos.”
Além dos quadrinhos
“Hoje no Brasil todo cartunista precisa tocar algum lado B de seu trabalho, a não ser que você seja absorvido pelo mercado internacional. Você faz as tiras porque é um louco e gosta muito disso. Mas é difícil sobreviver desta maneira, a não ser que conquiste uma rede de distribuição do trabalho. Eu já fiz roteiros para TV e cinema. Inclusive dei total liberdade para que adaptassem e mexessem no que quisessem em relação à personagem quando começaram a produzir a série protagonizada pela Maria Casadevall. Também gosto muito da área da dramaturgia. Já escrevi três peças que foram encenadas em São Paulo e estou fazendo mais uma agora. Mas também eu nunca gostei de deixar lado a atividades das HQs por muito tempo, não.”