Já virou um hábito. Se tem livro novo de Lourenço Mutarelli na praça, a primeira cidade a ser visitada por ele após o evento de lançamento em São Paulo, onde mora, é mesmo Curitiba. Neste fim de ano ele não foge à regra. Está na capital paranaense para, a partir das 19h. bater papo com os leitores e fazer uma sessão de autógrafos de Capa Preta, antologia que reúne suas quatro de suas primeiras obras em quadrinhos – mais informações sobre o evento, na Itiban, você encontra aqui.
O livro, que está sendo saindo pela recém-lançada editora Comix Zone!, resgata importantes obras que lançaram o trabalho de Mutarelli e firmaram seu nome como um dos mais importantes autores brasileiros de HQ. Todas as quatro foram agraciadas com o HQ Mix, o mais importante prêmio dedicado à arte sequencial nacional, mas encontravam-se atualmente fora de catálogo. Então, o amigo, escritor e fã assumido do gênero Ferréz – que criou em junho deste ano a Comix Zone! ao lado do youtuber Thiago Ferreira – tratou de disponibilizar novamente pela sua própria casa estes clássicos de Lourenço, lançados durante os anos 1990.
Como indica um breve texto incluído na contracapa de Capa Preta, a atividade de criar e desenhas histórias em quadrinhos foi o remédio ideal para Mutarelli superar uma forte crise depressiva crônica que o fez ficar bem recluso, sem quase nunca sair de casa. Esta fase foi o efeito colateral de uma brincadeira realizada por alguns colegas em 1988, quando estes contaram com outros amigos para simular um sequestro antes de levá-lo a uma festa surpresa de aniversário.
Depois de participar de uma reunião do clube de leitura Iticlub, que discutiu na tarde deste domingo um de seus títulos em quadrinhos mais famosos (Diomedes – A Trilogia do Acidente, relançada em 2012), Mutarelli conversou com o Ric Mais as obras reunidas em suas páginas: as graphic novels Transubstanciação (1991), Desgraçados (1993), Eu Te Amo, Lucimar (1994) e A Confluência da Forquilha (1997).
Resgate das obras
“Muita gente me cobrava lançar novamente estas obras, mas eu sempre acabava deixando tudo para lá. Afinal é muito pesada, representa uma fase assim na minha vida. Mas também não achava justo ficar escondendo isso dos leitores. Aí veio o Ferréz, que é amigo meu, com a ideia de fazer isso por esta nova editora dele.”
Fase pesada
“Foi um período bastante depressivo para mim, de bastante agressividade também. Eu vinha de uma juventude perdida e isto acabou sendo o meu tratamento. E já está fazendo quase trinta anos disso tudo. Eu costumo reler o que eu faço, mas nestas obras só dei uma folheada por cima. Não consigo rever porque levanta muita poeira daquela época e ainda não me sinto preparado para isso.”
Título do livro
“Capa Preta tem este nome porque as quatro obras aqui reunidas foram lançadas com capas escuras, pretas, e eram assim chamadas informalmente por quem ia comprar nas lojas: ‘o livro da capa preta’. Em todas as quatro, o preto predomina em cima do branco. Isso refletia o meu estado de espírito da época. Não estava bem comigo mesmo. Levava sempre as coisas muito a sério. Meu humor não era para distrair ou divertir, mas algo vingativo, feito para machucar. Me faz lembrar um editor que dizia para mim que capa preta não vende livros. E eu sempre respondia para ele que o livro mais vendido do mundo, que é a Bíblia, tem capa preta.”
Ontem e hoje
“As obras que estão em Capa Preta não têm concessão, não têm filtros. São experimentações, coisas que eu continuo fazendo quando escrevo. Parei de fazer quadrinhos lá pelos meados dos anos 2000. Eu não tenho muita lembrança daquela época, não. Aliás, eu lembro só coisas ruins daquela época. Minha mulher que vive falando que eu preciso também me lembrar das coisas boas.”
Transubstanciação
“É a história de Thiago. Todo mundo afirma que ele é louco e ele diz que é poeta. Para ele, a melhor forma de demonstrar amor por alguém é matar quem ele ama ou sendo morto por ela. Para ele, o amor é uma libertação que ocorre somente através da morte envolvendo a pessoa amada.”
Desgraçados
“Foi uma parceria com meu amigo Glauco Mattoso, que publicava uma revista chamada Mil Perigos. Ali eu forcei uma unidade, estava muito influenciado pela série de filmes Decálogos, do Krzysztof Kiezlowski. Cada história acaba apresentando o personagem da próxima. Há um texto na contracapa do livro que diz que entre o nascer e o morrer existe algo, um momento efêmero, único, de um fascínio estúpido, que se chama vida. Aqui eu falo sobre o prazer com a dor. Mas é a dor de existir mesmo. Como a vida pode ser breve, estúpida e fascinante.”
Eu Te Amo, Lucimar
“Eu adoro falar sobre a ideia do duplo. Aqui isso é algo que se estende do Desgraçados. Mas basicamente, é uma história sobre decomposição. Do corpo, material mesmo.”
A Confluência da Forquilha
“É uma brincadeira com a dificuldade de um artista que sempre faz o mesmo quadro. Ele tem três fases. Em uma faz o Larry, dos Três Patetas. Em outra, Baudelaire. Na outra eu não me lembro quem é. Ele vive sem dinheiro mas quando chega um cara oferecendo uma quantia para comprar toda a sua obra ele acaba ficando ofendido com isso, de ter de se desfazer de tudo ao mesmo tempo. É um pouco a maldição de todo artista, também.”
Próximos relançamentos
“Para o ano que vem, já está programado que a Cia. Das Letras irá relançar outra obra minha em quadrinhos, chamada A Caixa de Areia ou Eu Era Dois em Meu Quintal. Este título foi lançado há pouco mais de dez anos. Tem um pouco de autobiografia, antes disso virar moda. A editora também irá relançar um romance meu, chamado Jesus Kid, também hoje fora de catálogo. Aliás, o filme baseado neste livro foi rodado aqui em Curitiba.”