Crítica: O Diabo de Cada Dia
A Netflix parece estar disposta a não deixar seu assinante sem grandes títulos durante a quarentena, ou para quem ainda não desistiu dela. E desde meados do segundo semestre no ano passado, vem-se falando sobre tal adaptação do romance homônimo de Donald Ray Pollock, lançado em 2011. O Diabo de Cada Dia muito provavelmente passaria batido do “mainstream”, se não fosse pelo elenco repleto de estrelas que deram as caras nas maiores bilheterias recentes, sobretudo na casa da Marvel.
O thriller de terror traz recortes episódicos entre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, especificamente na zona rural do sul de Ohio. Lá, o espectador é apresentado à Willard Russel, um ex-combatente que procura recomeçar sua vida ao lado da esposa, Charlotte. Ela dá luz à Arvin Russel, e todos, até então, têm uma vivência pacata na pequena cidade. Mas com o falecimento de seus pais, o destino de Arvin muda completamente e diversas histórias e pessoas cruzam seu caminho, moldando completamente a personalidade do órfão.
Sob a direção de Antonio Campos, é esperado que um ambiente pesado e desconfortável ditasse o tom do longa. Muito disso se deve ao que mais ou menos pôde ser visto em The Sinner e Christine, seus trabalhos de outrora. Trata-se de uma narrativa densa, sisuda e angustiante, embora exista um desequilíbrio aqui, por não haver qualquer tipo de alívio narrativo que traga o filme para as proximidades do espectador. Ok que estamos falando de um western rural creepy ambientado entre os anos 40 e 60, mas há sobrecarga demais na perspectiva de Campos, assim podendo ser uma experiência restritiva e arrastada para parte da audiência.
Essa conjuntura toda é posta para explicitar como a fé exacerbada e distorcida pode acabar cegando uma pessoa e levá-la a cometer coisas horrendas, sempre pautadas na religião, como se fosse um manto divino que a isentasse de qualquer responsabilidade de seus atos – o que, convenhamos, vê-se muito por aí, mesmo nos dias de hoje. E é nesse ponto que o elenco traz a consistência.
Tom Holland é o maior ponto fora da curva. Já demonstrou que sabe fazer drama em Z: A Cidade Perdida, por coincidência com um personagem ligeiramente parecido. Sua transição é fluída, intensa e feita sem atropelo. O Nathan Drake vem em boas mãos no aguardado live-action de Uncharted. O outro destaque, por mais efêmero que seja, vai para o personagem de Robert Pattinson, o futuro Batman que, aqui, vive um reverendo repulsivo que se aproveita da fé de suas seguidoras para cometer abusos sexuais. Ele é sórdido, baixo, eloquente e contracena muito bem com Holland. Essa interação dos dois certamente é a mais marcante do longa. Quem dá o pontapé disso tudo, e muito bem, é o personagem de Bill Skarsgård: o Pennywise do remake de It – A Coisa. Ele dá vida a um homem devastado pelos horrores que presenciou lutando na guerra, ao passo que impressiona pelas decisões desesperadas e hediondas que toma para tentar consertar as coisas. Já Jason Clarke, Sebastian Stan, Riley Keoug, Eliza Scanlen e grande elenco têm papéis mais pontuais, sendo os degraus para escalar a trama.
Podendo ser uma experiência maçante para um público desavisado e imersiva para os entusiastas de thrillers de terror, O Diabo de Cada Dia se vende com um elenco poderoso e uma crítica incisiva à religião como desculpa para praticar atos horrendos e descabidos. Talvez possa não valer o fator replay, mas certamente vai prender sua atenção graças a boas atuações e muitos cadáveres sendo jogados pelo chão ao longo da trama. Não espere por rumos otimistas aqui.