Martin Scorsese brinca com verdades e histórias sobre turnê de Bob Dylan em 1975
Cotação: ★★★★½
Quando entrou em contato com o recém-nascido cinema nos anos finais do Século 19, o ilusionista francês Georges Méliès enxergou um caminho que pudesse ampliar sua atuação no ramo do entretenimento. Uma de suas primeiras produções reproduzia suas atividades de mágico no Teatro Robert-Houdin. No curta-metragem The Vanishing Lady (1896), Méliès faz a sua assistente sentar-se numa cadeira sobre um tapete e a cobre com um pano. Quando retira o tecido, ela simplesmente não está mais ao seu lado. Somente a cadeira e o tapete. Depois desta brincadeirinha, sua carreira cinematográfica foi crescendo em pretensão, produção e grandiloquência, somando mais de quinhentos títulos até estourar a Primeira Guerra Mundial em 1914 e seus investimentos quebrarem, afetando-lhe a vida e a saúde.
Logo nos primeiros segundos de Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese, o truque de The Vanishing Lady é reproduzido para logo depois vir a afirmação de que o homem só diz a verdade quando coloca uma máscara. Aí que entra o documentário proposto em si pelo diretor norte-americano. Mais um sobre Bob Dylan, agora especificamente focado numa turnê bastante diferente capitaneada pelo cantor e compositor.
Peraí… Dylan? Mais um documentário? Não, não. Primeiro é bom prestar atenção quanto ao subtítulo: “uma história de Bob Dylan por Martin Scorsese”. E a cena inicial com Méliès e sua assistente não está lá colocada à tôa, assim como a reprodução da famosa frase de Oscar Wilde. São dois avisos de que o espectador da Netflix (que lançou no último dia 12 de junho, de forma simultânea em vários países, Brasil inclusive), pode esperar de tudo pelas próximas duas horas a seguir. Menos o compromisso com a verdade. Então Bob e Martin embarcaram numa grande viagem de recuperar aquela curiosa viagem realizada entre 30 de outubro e 8 de dezembro de 1975.
Os registros realizados em filme e fotografia são algo de magistral e captam bem a atmosfera daquele bando de loucos, lunáticos, escritores e poetas que se juntaram em gangue e, com uma banda de rock a tiracolo como apoio, percorreram algumas cidades da região norte dos Estados Unidos (com extensão de quatro datas ao Canadá) que não costumavam receber muitos espetáculos musicais com artistas de grande porte. Ao gran finale ficou reservado o Madison Square Gordon, em Nova York, palco de grandes confrontos da história do boxe. Tudo porque Dylan havia acabado de compor uma canção de protesto chamada “Hurricane”, feita para chamar a atenção das pessoas a respeito do boxeador Rubin Carter, que estava preso alegando inocência no referido caso. Ao lado de amigos e companheiros como o dramaturgo Sam Shepard, Patti Smith, Joni Mitchell, o ex-Byrds Roger McGuinn, a violinista Scarlet Rivera, o beatAllen Ginsberg e a eterna parceira de juventude folk Joan Baez. O clima informal, trocando os grandes palcos por salões, pequenos ginásios e até mesmo reservas indígenas, permita àqueles artistas o retorno à pureza da comédia dell artede séculos atrás, quando as caravanas atraíam a plateia de pontos mais distante viajando com seus os rostos pintados (a tal máscara do comecinho do filme) e adereços circenses (como chapéus, flores e instrumentos musicais).
Só que muita parte do que está no filme não é verdade. Alguns entrevistados não existem, como o suposto diretor que captou as cenas durante a turnê ou um político amigo do ex-presidente Jimmy Carter (na verdade, este é um personagem de uma série dirigida em 1988 por Robert Altman e também com espírito mockumentary). A base branca que Dylan passava na cara para cantar em todos os shows não teve inspiração no grupo Kiss. Sharon Stone não teve caso com Dylan quando era adolescente e muito menos “fugiu de casa com o circo quando ele passou por sua cidade”. Aquele que se diz o produtor executivo da turnê e que detalha todas as questões financeiras e de logística é apenas o atual CEO da Paramount, uma das maiores distribuidoras da indústria cinematográfica. A parte mais deliciosa de tudo isso fica para as pequenas e constantes farpas trocadas no decorrer das lembranças dos depoimentos do fictício cineasta europeu de vanguarda Stefan Van Dorp (interpretado pelo ator argentino Martin von Haselberg, marido de Bette Midler) e Dylan (que pode ser avesso a dar entrevistas mas aqui se revela um excelente ator quando lhe convém).
Muitos podem achar que é pura trolagem o fato de Dylan e Scorsese se equilibrarem na corda bamba entre o real e a imaginação – cuja construção dos fatos, tal qual os efeitos dos filmes de Méliès, acaba tornando-os tão míticos e verdadeiros quanto aquilo que realmente ocorreu durante as semanas que antecederam o verão de 1975. Só que o subgênero do mockumentário (termo que pega emprestado o verbo em inglês mock, que significa “zombar”, “falsear”, “fazer escárnio” para propor o contraponto com a intenção documental de uma produção audiovisual) não só tem força criativa como também uma boa representatividade no cinema. De Zelig de Woody Allen aos grupos Rutles e Spinal Tap, passando pelos recentes Borat, A Bruxa de Blair e Eu Ainda Estou Aqui, volta e meia sempre surge uma ótima opção com esta proposta. Rolling Thunder Revue… é a bola da vez e pode ser vista tanto por puristas de documentários musicais como um mero amante de entretenimento cinematográfico.
Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese (EUA, 2019 – Netflix). Direção: Martin Scorsese. Com Bob Dylan, Allen Ginsberg, Patti Smith, Martin von Haselberg, Scarlet Rivera, Joan Baez, Roger McGuinn, Larry ‘Ratso’ Sloman, James Gianopoulos, Ramblin’ Jack Elliott, Sam Shepard, Sharon Stone, Joni Mitchell, Michael Murphy, Rubin ‘Hurricane’ Carter, T-Bone Burnett. Mick Ronson. 142 minutos. Lançamento em streaming: 12 de junho.