A elite econômica brasileira saiu da toca na pandemia. A maior parte respeitou o isolamento físico, é claro, mas muitas das famílias mais ricas do País vieram a público anunciar que tinham doado milhões de reais individualmente, como pessoas físicas. Foi um número inédito de bilionários que assumiu ter tirado do próprio bolso grandes quantias para o combate ao coronavírus e seus efeitos, mesmo com as empresas que controlam tendo feito o mesmo movimento.

A doação por parte dos muito ricos não é novidade. “É algo que sempre existiu e, por isso, não pode ser classificado como tendência”, diz Fábio Mariano Borges, professor da ESPM. “Sempre tivemos, por exemplo, grandes mecenas que construíram alguns dos museus e dos acervos mais importantes do País.” A diferença é que, na pandemia, alguns dos principais empresários do País colocaram seus rostos e assinaturas na benemerência.

“Houve um amadurecimento das lideranças econômicas”, afirma Rodrigo Pipponzi, vice-presidente do Instituto ACP, entidade de investimento social de sua família, que é dona da RaiaDrogasil. “Assumir a doação e fazer isso de maneira natural é um passo importante para entender e desenvolver a cidadania e a recorrência, que não podem ser apenas iniciativas paliativas em emergências.”

O que começa a mudar é um mea-culpa e a conscientização de que a cultura da doação – e de cidadania pelo envolvimento em projetos nos quais se acredita – só acontecerá a partir de exemplos concretos. “Toda elite é culpada da situação que passamos hoje, seja ela econômica, política, intelectual”, diz Rubens Menin, fundador da MRV Construtora e do banco Inter. “A elite é um reflexo da sociedade com mais poder de fogo e cabe a ela essa missão, prioritariamente.”

Ele não é o único a pensar assim. “A elite tem de assumir o papel de contribuir e conscientizar”, afirma Elie Horn, dono da Cyrela. “É nossa obrigação moral, social, de igualdade e justiça.”

Segundo alguns entrevistados, a nova geração vem tendo papel importante para fazer os mais velhos mostrarem a cara. Para os mais jovens, os valores mais significativos vão além da acumulação. Também ajudou o fato de o coronavírus ter atingido a todos. “Como o coronavírus afetou e fragilizou mesmo quem tem muito dinheiro, a solidariedade foi maior”, diz Beatriz Bracher, do Instituto Galo da Manhã, que concentrou as doações das famílias Botelho Bracher na pandemia.
Mais importante do que doar o dinheiro, dizem, é descobrir as causas que se quer apoiar e acompanhar a transformação promovida pelo dinheiro bem aplicado. “O prazer não está em doar, mas em ver realizado”, diz Beatriz.

O desejo de todos é que o movimento permaneça após o fim da pandemia. “As organizações da sociedade civil saem fortalecidas, as pessoas aprenderam que não é tão difícil doar e a transparência cresceu”, diz Pipponzi. Para Paula Fabiani, diretora presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), ficou claro que cabe a cada brasileiro construir seu caminho como cidadão. “A sociedade civil respondeu rapidamente com soluções em um ato de cidadania e participação social”, diz ela. “Parte disso vai ficar.”

‘Ninguém salva o mundo sozinho’

“Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos”, escreveu João Cabral de Melo Neto, no poema que inspirou a escritora Beatriz Bracher a batizar o Instituto Galo da Manhã. “Sempre achei esse poema lindo e ele diz o que a gente acredita: ninguém salva o mundo sozinho.” Foi uma escolha natural para a entidade que ela criou no fim do ano passado. O objetivo era organizar suas doações, priorizando os eixos da defesa da democracia, dos direitos humanos e da mulher.

Só que chegou a pandemia e a prioridade para as novas doações tornou-se outra. Beatriz, os quatro irmãos e outros membros da família começaram a conversar. “Quando percebemos que teríamos de nos isolar, nos identificamos com quem não conseguiria fazer a mesma coisa”, afirma. “Resolvemos que tentaríamos possibilitar o isolamento.”

Filhos de Fernão Bracher, ex-presidente do Banco Central e um dos fundadores do Itaú BBA, e irmãos de Cândido Bracher, presidente do Itaú Unibanco, a família Botelho Bracher já tinha o hábito de doar. Só que, desta vez, eles se juntaram. Também aumentaram o valor dos aportes. Segundo Beatriz, era uma forma de ter voz na hora de decidir e acompanhar o uso dos recursos. “Recebemos um pedido da Cufa (Central Única de Favelas) para doar 4 mil cestas a 4 mil mães”, diz. “Neste caso, por exemplo, decidimos que seria mais efetivo entregar dinheiro a elas.”

De acordo com Beatriz, além de acompanhar o uso da verba, quem doa começa a entender melhor a precariedade das condições em que as pessoas vivem. Passa a pensar mais nos políticos que apoia e em como fazer de forma diferente. A doação de tempo e dinheiro passa a ser feita para que aconteça uma mudança estrutural e não apenas pontual.

‘Aqui, doação não é número em planilha’

Em uma das doações na pandemia, o entregador do Magazine Luiza percebeu que a família beneficiária em Guarulhos precisava de muito mais do que o colchão recebido para a criança especial. Na casa, faltava simplesmente tudo. Até comida. Pouco depois, o carregamento voltou completo, com direito a móveis e cesta básica.

“Aqui, doação não é só número numa planilha de Excel”, diz Carlos Renato Donzelli, diretor da holding e membro do conselho de administração do Magalu. “Como temos uma operação muito pulverizada, presente em todo o País e com os funcionários envolvidos, ninguém fica indiferente e a agilidade é muito grande.”
A multiplicação de demandas também. Esse foi um dos motivos pelo qual as famílias Trajano e Garcia doaram mais R$ 20 milhões na semana passada. No início da crise, elas já haviam tirado do próprio bolso R$ 10 milhões. O Magalu, outros R$ 20 milhões.

“No meio do caminho, percebemos que a demanda não iria acabar e precisamos acelerar o processo de doações porque as necessidade ficaram grandes e urgentes.” Donzelli cita a doação de 20 mil tablets a alunos das escolas públicas sem acesso ao ensino virtual.

Há mais de 25 anos próximo às famílias controladoras do Magalu, Donzelli disse que a necessidade das doações pessoais foi percebida pouco antes da pandemia, por causa da sensibilidade junto aos clientes do varejo. Importantes nas cidades em que estão presentes, as lojas e os centros de distribuição viraram centrais de pedidos das comunidades.

Segundo ele, Luiza Trajano, presidente do conselho do Magalu, capitaneia o time responsável pelas doações.

“Meus filhos me falaram: papai, doe em vida”

Há cinco anos, o diretor de uma ONG chamou Elie Horn, fundador da construtora e incorporadora Cyrela, de covarde. “O senhor doa, mas não quer que ninguém saiba e faça, ele me disse. Daquele dia em diante, comecei a falar (das doações) e nunca mais parei”, diz Horn, de 76 anos. Para ele, tornar pública a imagem de doador foi um sacrifício. “É mais difícil vir a público e tomar pauladas, mas é preciso cutucar o sentimento das pessoas para que façam o bem.”

Assim, Horn se tornou o primeiro bilionário latino-americano, ao lado da mulher, Susy, a assinar o Giving Pledge. Criado por Bill Gates, o movimento tenta angariar donos de grandes fortunas a doar à caridade 60% de seu patrimônio em vida. Horn ainda é o único brasileiro do grupo de 210 bilionários, que inclui o gestor Warren Buffett e o dono da Tesla, Elon Musk.

“Quando eu falei para meus filhos, eles disseram: papai, doe em vida.” Horn se irrita quando fala em crescimento de doações durante a pandemia. “Na crise, pode-se até fazer um pouco a mais, mas não pode ser só nessa época porque as pessoas comem, bebem e vivem todo dia, o ano inteiro.”

É preciso ter cultura de comunidade’

No mesmo dia em que concedeu entrevista, Rubens Menin, sócio da MRV Engenharia, do banco Inter e da CNN Brasil, reuniu-se virtualmente com 13 dos maiores doadores do Brasil. No encontro, discutiram prós e contras de se assumir publicamente a doação de recursos. “Foi quase um encontro filosófico”, diz Menin.
A conclusão: é importante os doadores tornarem públicas suas ações. “É preciso internalizar a cultura na comunidade, como o americano faz”, diz. “Temos a obrigação não só de doar, mas também de mostrar e incentivar que mais pessoas trilhem esse caminho.”

Segundo ele, todos discutem em casa os projetos a serem apoiados de maneira estruturada e o impacto alcançado. É quase como se fosse um negócio. Há estratégias, funcionários, planejamento de doações quinquenais e crescentes.
Nos últimos cinco anos, os Menin haviam doado R$ 10 milhões por ano. Antes da pandemia, o plano era de aumentar o valor para R$ 20 milhões, nos próximos cinco. Em 2020, porém, a soma já chega a R$ 30 milhões. “Filantropia é igual droga, só que os efeitos são maravilhosos.”

Não posso guardar meu privilégio’

Desde que a pandemia começou, Rodrigo Pipponzi diz que se sente mais ouvido. À frente do Instituto ACP, entidade de investimento social de sua família, que é dona da Raia Drogasil, ele é profissional da área há mais de uma década. Odiava o termo herdeiro, até descobrir seu papel como empreendedor social. “Não posso guardar para mim o privilégio que tenho”, diz Pipponzi.

Na pandemia, um número grande não só de pessoas, mas também de companhias, começou a querer aprender com sua experiência.

Antônio Carlos Pipponzi, presidente do conselho da RaiaDrogasil e controlador da empresa, tem nome conhecido no mundo das doações. A trajetória de outro Pipponzi, o filho, na área começou com a Mol. Inicialmente voltada a publicações customizadas para empresas, a editora ganhou outro objetivo quando ele percebeu a oportunidade de fazer revistas vendidas no varejo que revertem o lucro para instituições e causas.

Na pandemia, o IACP criou o movimento Família apoia Família no qual, por meio de uma plataforma, doadores contribuem a partir de R$ 50. O dinheiro se transforma em cestas básicas para 70 comunidades. Desde abril, já arrecadou R$ 11,6 milhões. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.