Cotação: ★★★★½
Existem certos comportamentos e atitudes que, se vistos agora, com o distanciamento provocado ao longo dos anos por toda a evolução de costumes, tecnologia e pensamento, parecem ser coisas inconcebíveis nos dias atuais. De tão absurdamente diferente do que acontece hoje, inclusive. E bom em torno disso que gira A Vida Invisível, longa-metragem que estreia hoje nos cinemas nacionais e que, em agosto, superou o rival Bacurau por apenas um voto na eleição para a indicação brasileira para a vaga de concorrência ao Oscar de melhor produção em língua não inglesa de 2020.
Adaptado do romance escrito anos atrás pela jornalista e escritora Martha Batalha, o longa-metragem se passa no Rio de Janeiro entre os anos 1940 e 1950, quando a cidade ainda era a capital do país e trazia ainda profundas raízes na colonização portuguesa e o ranço do patriarcado imperativo no cotidiano das famílias. A história gira em toro da separação das jovens irmãs Guida e Euridice, movida pela personalidade contrastante de ambas: a primeira, alguns anos mais velha, é atirada, impulsiva, inconsequente, adora confrontar regras. Por isso abandona a família de uma hora para outra para fugir em um navio para a Europa junto com o namorada grego que acabara de conhecer. A outra, bastante retraída e tímida, é capaz de se afastar de sonhos, vontades, desejos e projeções de vida somente para não contrariar os dois machos alfa de sua vida: pai e noivo/marido. E é justamente o pai que acaba separando de vez a vida das duas. Quando Guida retorna para casa, arrependida, grávida e abandonada pelo grego, é expulsa por ele de casa em nome da moral e dos bons costumes da sociedade.
A partir de então as duas começam a experimentar os sofrimentos da vida em paralelo. Guida, sem casa, com bebê para criar, submete-se a empregos pesados, vida simples no subúrbio e a incerteza do futuro. Euridice, no entanto, torna-se prisioneira das vontades do marido – que alterna a bipolaridade entre a doçura e a agressividade – e desiste do sonho de se tornar uma pianista de carreira internacional. Vive uma vida invisível, o mesmo que, de certa forma, também ocorre com a irmã. E uma passa os anos todos seguintes tentando encontrar novamente a outra, o que parece ser quase impossível em uma metrópole agitada e em crescimento como o Rio de Janeiro.
Com a direção sensível e delicada de Karim Aïnouz e uma equipe técnica formada basicamente por profissionais do sexo feminino, o filme mergulha no passado já um pouco distante para fazer um profundo retrato do sofrimento das mulheres urbanas brasileiras de meados do século 20, quando o gênero feminino ainda pouco tinha voz no cotidiano das famílias. Por isso, cenas de violência (não apenas sexual) volta e meia aparecem na tela para impactar ainda mais o espectador com algo que era extremamente comum naquela época mas que hoje choca pela grosseria, rispidez e barbárie. Em certo momento uma tirada resume bem o que se passava naquela época (e o que as duas protagonistas passam a enfrentar após a separação) quando o médico diz a Eurídice, na cara dura, que é um alívio o fato de seu filho ser do sexo masculino.
Apostando em altos níveis de emoção – a ponto de ser declarado um “melodrama tropical” – A Vida Invisível aposta justamente no poder sentimental não só para fazer uma grande carreira nos cinemas como, quem sabe, trazer o tão sonhado Oscar que falta para o cinema brasileiro. A produção já levou prêmios em festivais, inclusive na mostra Um Certo Olhar, incluída na programação do último evento em Cannes. Sob a orquestra comandada por Aïnouz, as atrizes Julia Stockler e Carol Duarte estão soberba na interpretação das maltratadas Guida e Euridice. A cereja do bolo é a participação especialíssima de Fernanda Montenegro, que coroa com maestria ímpar na sua atuação o ano em que completa nove décadas de vida.
Tudo isso se soma a figurinos caprichados, fotografia bela (inicialmente entre os tons de vermelho e verde e depois ficando esmaecida de brilho nas cores conforme as protagonistas enfrentam suas dificuldades), trilha sonora requintada, montagem crua porém precisa, alguns erros de continuidade e duração extensa que nem se nota nas cadeiras do cinema acaba tornando A Vida Invisível um dos principais títulos da história do cinema brasileiro do Século 21. E, ao lado de Bacurau, revela o momento de extrema criatividade e força da sétima arte em verde e amarelo. Mesmo quando o setor do audiovisual sofre seu maior período de ataques e perrengues de quem diz jurar defender as cores deste país.
A Vida Invisível (Brasil/Alemanha 2019). Direção: Karim Aïnouz. Roteiro: Muirlo Hauser, Inés Bortagaray e Karim Aïnouz. Com Julia Stockler, Carol Duarte, Flávia Gusmão, Bárbara Santos, António Fonseca, Maria Manoella, Gregório Duvivier, Nokolas Antunes, Flávio Bauraqui, Cristina Pereira, Marcio Vito, Gillray Coutinho e Fernanda Montenegro. Vitrine/Sony Pictures. 139 minutos. Estreia nos cinemas brasileiros: 21 de novembro.