Conto de fadas ganha adaptação mais próxima à versão original
Cotação: ★★★½
Todo conto de fadas traz sempre um ensinamento implícito. A moral de Chapeuzinho Vermelho é não dar ouvido a estranhos. Branca de Neve nos alerta que a inveja e o excesso de vaidade são sentimentos que podem nos cegar. João e Maria, por sua vez, remetem a temas como abandono e perda da inocência. As três narrativas são parte do folclore alemão na Idade Média e foram adaptadas da tradição oral no século XIX pelos irmãos Grimm. Desde então, essas fábulas são transmitidas geração após geração no mundo ocidental.
Acontece que, para a maioria de nós, o contato com os clássicos se deu pela versão ainda mais amenizada dos estúdios Disney, com suas princesas e príncipes encantados e finais felizes. Os originais, porém, revelam uma realidade cruel, macabra, envolta na obscuridade da idade das trevas, da fome, da caça às bruxas pela inquisição – época em que milhares de mulheres, que começavam a assumir outros papeis sociais senão a de mãe e esposa, foram queimadas na fogueira. Por isso não é à toa que o novo filme do diretor, ator e roteirista Oz Perkins, Maria e João – O Conto das Bruxas traga como protagonista a irmã de João, a adolescente Maria (interpretada pela atriz Sophia Lillis, da franquia It: A Coisa).
O filme começa narrando a fábula da menina de chapéu cor-de-rosa, que foi amaldiçoada por uma feiticeira em troca de ter uma doença congênita curada. Essa história é o ponto de partida para entender o percurso de Maria e João (Sammy Leakey) durante o filme. Numa época de extrema escassez de comida, a adolescente tenta arrumar emprego como doméstica, mas desiste diante das segundas intenções do patrão. Os irmãos, então, são expulsos de casa pela própria mãe, incapaz de prover sustento aos filhos.
Ao contrário da versão pasteurizada da Disney dos anos 30 (feita para a série de curtas Silly Simphonies e que ganhou no inglês o título de Babes In The Woods, ou Crianças na Floresta em português), os irmãos inocentes não têm a intenção de retornar ao lar e por isso não deixam migalhas de pão pelo caminho. Os pássaros são corvos assustadores. Os inimigos são a fome, o frio, a noite escura e os estranhos a quem Maria sempre fica com um pé atrás ao pedir ajuda, porque, segundo ela, as pessoas sempre pedem algo em troca.
Maria e João seguem pela floresta negra em busca de comida e abrigo à mercê de toda sorte de armadilhas. Comem cogumelos alucinógenos e avistam bruxas pelo caminho até chegarem à casa triangular (para os alquimistas, o triângulo era símbolo do fogo) feita de madeira e não de doces, onde mora a feiticeira Holda (Alice Krige) e seu gato sem pelo. A bruxa é uma velha assustadora e ao mesmo tempo sarcástica em sua retórica com traços feministas – como no momento em que Maria pergunta se ela é casada e Holda responde que não carrega uma bola presa ao tornozelo.
O roteiro de Job Hayes, repleto de aforismos (“uma mente pequena acredita no que vê” ou “pense menos e saiba mais”), e a atmosfera sombria de Oz garantem uma adaptação muito mais fiel à tradição medieval em comparação a João e Maria: Caçadores de Bruxas, de 2013, cuja sequência deve estrear ainda neste ano. Oz, que fez seu debut na direção com o thriller psicológico A Enviada do Mal em 2015, mostra a cada trabalho que tem mesmo o gene do terror: ele é o filho mais velho do ator Anthony Perkins, imortalizado na pele de Norman Bates, protagonista de Psicose, clássico do mestre do suspense, o britânico Alfred Hitchcock (a mãe de Oz também era atriz e fotógrafa e morreu nos ataques às Torres Gêmeas). Apesar de uma filmografia ainda curta, o diretor já carrega um estilo próprio: seu ritmo é mais lento, priorizando detalhes em closes em detrimento dos jumpscares. Por isso, seus longas não são extensos e nem podem ser. Maria e João traz uma fluidez narrativa mais vagarosa e menos palatável, aproximando-se do horror art-house do diretor Robert Eggers (O Farol) e, por ser cult, há dificuldade de inseri-lo no circuito comercial.
Assistir Maria e João é muito mais uma experiência visual e estética do que aterrorizante, proporcionada pela exuberante fotografia assinada por Galo Olivares (do aclamado Roma). Explora a iluminação natural, dos raios solares, candelabros e sombras, já que não havia eletricidade naquela época. A trilha sonora do francês Robin Coudert também dá um clima especial a essa atmosfera dark com uma escolha anacrônica de uso de sintetizadores bem aos moldes dos filmes de David Lynch e lembrando até Blade Runner, numa referência ao synthpop, estilo cujos alemães são pioneiros.
Em tempos sombrios, Maria e João – O Conto das Bruxas nos faz refletir, enfim, sobre a origem de nossos verdadeiros inimigos e como conviver com a nossa própria escuridão.
Maria e João – O Conto das Bruxas (Gretel & Hansel, Canadá/Irlanda/EUA/África do Sul, 2019). Direção: Oz Perkins. Roteiro: Rob Hayes. Com Sophia Lillis, Samuel Leakey, Charles Babalola, Alice Krige e Jessica De Gouw. Imagem Filmes. 87 minutos. Estreia nos cinemas brasileiros: 20 de fevereiro.