A noite de 20 de julho de 1969 marcava um acontecimento histórico do Século 20 que logo seria contada pelo então desconhecido David Bowie. Sentados à frente da televisão, desde pouco antes da virada da meia-noite, os britânicos acompanhavam com os olhos grudados na telinha das emissoras BBC (canais 1 e 2) e ITV a tão aguardada chegada do homem à lua, através da tripulação da nave americana Apollo 11, liderada pelo astronauta Neil Armstrong. Foram onze horas ininterruptas e ao vivo pela TV – fato raro em um tempo no qual transmissões via satélite ainda não faziam parte de nosso dia-a-dia.

Entre os comentários e narrações feitos pelos jornalistas nos estúdios, flagrava-se a reação do público pelas ruas, celebridades e políticos emitiam suas opiniões, atores consagrados liam poemas que exaltavam o fascínio e os mistérios de nosso satélite natural e o Pink

Floyd providenciava uma trilha sonora exclusiva e instrumental (a obra“Moonhead” depois estaria disponível logo depois, em vários bootlegsdo grupo). Complementando o misto de show e jornalismo, diversos músicos de jazz, rock e pop apresentavam no decorrer do falatório composições também voltadas aos temas lua e espaço. Uma delas, talvez pela ousadia do ineditismo e pelo realismo da letra, provocaria nos telespectadores tal sensação de estranhamento e curiosidade que acabaria por marcar para sempre a transmissão.

David Bowie ‘Space Oddity’

O responsável pelo feito era ainda um cantor e compositor ainda desconhecido do grande público. David Jones, recém rebatizado David Bowie (o sobrenome fora intencionalmente trocado para evitar confusões com Davy Jones, integrante de um grupo pop de sucesso da época chamado Monkees), tinha nas mãos a maior oportunidade de sua carreira. E não a desperdiçou. A partir daquela madrugada, a canção “Space Oddity” ficaria atrelada para sempre na memória dos britânicos – e consequentemente do mundo – e faria deslanchar a carreira daquele que viria a ser um dos grandes gênios do rock´n´roll.

Mas a música de David Bowie já existia havia um ano. Ela foi composta em 1968, inspirada pela corrida espacial que acirrava a disputa de Estados Unidos e União Soviética pela conquista do espaço. Entre janeiro e fevereiro de 1969, o britânico rodou as cenas de Love You Till Tuesday, um média-metragem promocional bolado por ele e seu empresário na época, Kenneth Pith, para projetar sua iniciante carreira de cantor, compositor e ator. “Space Oddity” entrou no roteiro de última hora, por decisão do próprio David Bowie, que interpretava os dois personagens da letra: o astronauta Major Tom e o responsável pelo Ground Control (a base que auxilia o foguete na Terra). O filme de meia hora de duração, entretanto, não obteve muito sucesso – nenhuma distribuidora quis comprá-lo e o artista também não chamou a atenção das grandes gravadoras da época. O público só conseguiu assisti-lo de fato em 1984, quando o videocassete revolucionava o mercado do audiovisual em todo o planeta. Vinte e um anos depois, a produção ganhou sua edição em DVD.

Compacto de David Bowie com ‘Space Oddity’

A BBC desencavou aquela desconhecida pérola que descrevia uma trágica odisseia espacial e o mundo conheceu a ficcional história do astronauta Major Tom. Contudo, há que se registrar a nova (e grande) jogada visionária de David Bowie e Pith: nove dias antes da teledifusão da música, já visando o gigantesco apelo trazido pelo pouso lunar da Apollo 11, foi lançado um compacto com a faixa cuja produção, negada anteriormente por George Martin e Tony Visconti, caiu nas mãos de Gus Dudgeon (que logo depois faria fama nos estúdios com os primeiros discos de Elton John). A “ajudinha” da BBC só deu o grande empurrão para alavancar as vendas. O sucesso foi tanto no Reino Unido que veio uma nova edição do single, voltada especialmente para o mercado americano.

‘Space Oddity’ em italiano

Depois do novo êxito do outro lado do Atlântico, “Space Oddity” ainda ganhou uma versão com os versos vertidos para o italiano, na época um fortíssimo mercado fonográfico não alcançado pelas faixas cantadas no idioma inglês – na verdade, uma decisão tomada pelo selo do artista, no rastro da ameaça do surgimento de versões “não-autorizadas” feitos por grupos obscuros da Itália. O britânico, então, voltou rapidamente aos estúdios de gravação para arriscar-se em “Ragazzo Solo, RagazzaSola” (“Lonely Boy, Lonely Girl”). O compacto saiu em novembro com um David Bowie crente de que estava cantando a mesma história do Major Tom criada por ele. Pura ilusão. A nova letra, escrita pelo hitmaker local Mogol, falava do amor vivido por um jovem casal que se encontrara pela primeira no topo de uma montanha.

O maior mérito de David Bowie ao compor “Space Oddity” foi ter feito uma letra dúbia, que conseguia retratar poeticamente – com extrema perfeição, diga-se de passagem – dois momentos históricos pelo qual a humanidade viva naquele tempo. Se os versos forem analisados da forma mais primária, você verá que a música conta a história de um astronauta que, embora acostumado com o status de herói da corrida espacial, acaba sendo traído pelo acaso e perdendo todo o contato com sua base na Terra e condenado a passar o resto de sua vida flutuando pelo espaço como um mero dejeto sideral. Nas entrelinhas, porém, estava algo ainda mais impressionante e que ia muito além da mera crônica artística daqueles dias de expectativa pela ida do homem à lua. Movido por toda a outra efervescência da época, David Bowie pincelou o crescimento sócio-psicodélico da contracultura, com a juventude cada vez mais jogada de cabeça nos ideais da liberdade de comportamento e pensamento e erguendo os estandartes dos excessos de sexo, drogas e rock´n´roll. Então, Major Tom não seria um astronauta, mas sim um hippie junkie que não conseguia lidar com sua vida real até perder de vez a conexão com a “Terra”.

Personagens de David Bowie

A odisseia vivida por Major Tom prosseguiu muito além da missão bem-sucedida dos astronautas Neil Armstrong e Buzz Aldrin em solo lunar naquele julho de 1969. Quando reeditado nos EUA por uma grande gravadora (a RCA), em janeiro de 1973, o segundo álbum da carreira de David Bowie (de 1969 e que então levava apenas o seu nome) foi rebatizado como“Space Oddity” e assim permanece até os dias atuais. Para o lançamento, um novo vídeo foi feito para a canção mostrando Bowie já com o visual transitório entre Ziggy Stardust e Aladdin Sane. É este clipe o que sempre é exibido pelas grandes emissoras de televisão. O mesmo disco ganhou nova versão britânica em 1975 – foi quando “Space Oddity” ganhou um novo compacto (com “Velvet Goldmine” e“Changes” como b-sides) e deu ao artista seu primeiro número 1 nas paradas do próprio país.
Hoje, cinquenta anos depois, Major Tom é celebrado como o primeiro grande personagem da bem-sucedida trajetória camaleônica de David Bowie nos palcos e filmes para o cinema durante os anos 1970. Depois viriam o alienígena Ziggy Stardust, o andrógino Aladdin Sane, o sombrio Thin White Duke e o isolado artista kraut dos discos gravados durante o autoexílio na então murada cidade alemã de Berlim Ocidental. Até que vieram os anos 1980 e a confirmação de David Bowie como um megastar do rock´n´roll, agora desprovido de personas e alteregos. O sinal para a definitiva mudança na carreira foi a segunda chance dada ao querido Major Tom. Bowie despediu-se dele revivendo-o brevemente na letra (eno videoclipe) da música “Ashes To Ashes”, agora produzida por Tony Visconti. Encarando-o como um junkie, então, transformou-o definitivamente em cinzas.

18 jul 2019, às 00h00.
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