Cotação: ★★★★
Mike Flanagan tinha um grande desafio a ser superado quando aceitou escrever o roteiro e dirigir a adaptação do livro Doutor Sono para o cinema. Afinal, tornou-se alvo de forte pressão vinda de todos os lados. De um lado, a pressão de produtores e executivos de um grande estúdio, na busca por um produto que pudesse satisfazer o grande público e arrebatar uma boa bilheteria na onda de toda essa leva de novos filmes de terror que chegaram às grandes telas nos últimos anos. Do outro, do autor da história, o rei da literatura de suspense Stephen King. Conhecido por detonar publicamente várias das transformações de suas obras em audiovisual, King exigiu tomar conhecimento do roteiro antes das filmagens para que nada acabasse muito diferente do que havia escrito – como ocorrera com O Iluminado, um dos filmes “bastardos” de sua obra para os quais ele sempre torceu o nariz. Por fim, havia ainda a séria desconfiança do séquito de cultuadores dessa mesma obra-prima dirigida por Stanley Kubrick. Como Doutor Sono é uma espécie de sequência tardia de O Iluminado havia muito medo de como sairia o resultado final e do quão aquém tudo poderia ficar diante da genialidade do diretor norte-americano.
Contudo, a missão de Flanagan – que acaba de chegar aos cinemas de todo o país – foi bem cumprida. Apesar da longa duração de duas horas e meia, Doutor Sono corresponde às expectatvas de todos – autor, financiadores, público e fãs do clássico de Kubrick – contando a história, quase quarenta anos depois do garotinho Dan Torrance, agora que ele cresceu e, infelizmente, tomou o mesmo caminho do pai e tornou-se alcoólatra. Só da neve, que marcou um momento triste de sua infância, ele procura manter distância, agora morando em uma região de mais calor como o estado da Flórida.
Apesar disso, de sua fuga contínua dos traumas que o aterrorizaram no Overlook Hotel de O Iluminado, um fato parece querer puxá-lo para o passado que quer apagar constantemente de sua vida: a habilidade de ouvir vozes dentro da sua cabeça e poder se comunicar da mesma forma com outras pessoas. E é aí que começa a trama principal de Doutor Sono: quando Dan (Ewan McGregor) encontra uma pré-adolescente chamada Abra (Kyliegh Curran) que também acaba sendo encontrada pela grande antagonista trama: a líder de um clã de outsiders que flutua entre o vampirismo, o misticismo e o espírito hippie. Rose The Hat (Rebecca Ferguson) caça incessantemente crianças que tenham este mesmo dom, para poder absorver sua energia em forma de vapor, o que lhes garante muitos anos de juventude e longevidade.
Flanagan mostra plena desenvoltura nisso. Com alguns momentos de pura ação e o leitmotiv do eterno embate do bem contra o mal vai desenvolvendo a trama com direito a boas pitadas trash em diversas cenas. Nestes tempos de efeitos visuais avançados possibilitados pelo cinema digital, estes detalhes garantem a parte de terror do filme. Com sua habilidade como montador, tudo fica mais ágil e mais saboroso ainda quanto ao ritmo impresso nas telas.
Tudo isto não impede, porém, que o diretor/roteirista também se volte aos puristas fãs de Kubrick e revisite boa parte da iconografia que marcou O Iluminado. Lá estão símbolos do clássico filme de 1980, como o Overlook Hotel, como o mesmo carpete de motivos hexagonais coloridos, o poço do elevador que jorra sangue, a loira pelada podremente cadavérica na banheira do quarto 237, o buraco feito pelo machado na porta de um dos quartos, as irmãs gêmeas assassinadas que aparecem sempre de azul e branco e mãos dadas, o barman que inclusive lembra fisicamente o papai Jack, o labirinto externo coberto de neve, a música de baile tocada por uma big band no final… Já que é para mergulhar nos traumas de infância que chacoalharam Dan por toda a vida, Mike joga para a galera e em casa ao adicionar todos estes detalhes de figurinos, cenários e personagens que entraram para a história do cinema pop do século 20. Nenhum fã de Kubrick pode reclamar da inexistência de referencias, muito menos da qualidade do novo filme.
E, sim, Stephen King não só aprovou o trabalho final do diretor e roteirista como ainda manifestou publicamente elogiosos comentários dirigidos a ele em sua conta no Twitter. Assim todos saem satisfeitos. Público, indústria, fãs, autor. De fato, Flanagan saiu-se muito bem – e com méritos e louvor – nesta arriscadíssima empreitada.
Doutor Sono (Doctor Sleep, EUA, 2019). Direção e roteiro: Mike Flanagan. Com Ewan McGregor, Rebecca Ferguson, Kyliegh Curran, Emily Alyn Lind, Cliff Curtis, Carel Struycken, Carl Lumbly e Alex Essoe. Warner. 151 minutos. Estreia nos cinemas brasileiros: 7 de novembro.