Os rappers Dexter e Afro X estão hoje em Curitiba por um motivo muito especial: o 509-E faz uma turnê nacional celebrando seus vinte anos de criação e a escala da noite desta sexta-feira é na capital paranaense (mais informações sobre local, horário e ingressos você tem aqui). Vivos é o nome da série de shows que coloca de novo as atividades da dupla em funcionamento depois de um longo intervalo de dedicação às carreiras solo de ambos – que, aliás, continuam em paralelo à volta oficial da parceria.
“A turnê se chama Vivos porque nós estamos vivos, a mensagem está mais viva do que nunca”, diz Dexter, em entrevista exclusiva ao Ric Mais. “A realidade do 509-E é permanente, ainda mais nestes tempos de MP3. Só que a magia do grupo que é novidade para muita gente, atrelada à saudade daqueles que puderam acompanhar os anos em que estivemos juntos até 2004. Foi uma decisão mais do que acertada interromper a carreira ali naquela hora, para que pudéssemos brindar agora. Agora esta turnê é uma oportunidade para ambos e um grande presente para a gente”. Para o rapper, o que motivou a parada há quinze anos foi algo além da vontade dos artistas. “Óbvio que houve diferenças. Mas o fato é que fomos impedidos de trabalhar pelo sistema. Não estavam dando oportunidades para a banda se apresentar ao vivo”. “O bom é que o monstro que estava adormecido todo este tempo só foi crescendo”, complementa Afro X, com humor.
Os dois fundaram a dupla quando estavam presos São Paulo – o nome vem da numeração da unidade em que ambos estavam encarcerados no pavilhão sete da Casa de Detenção de São Paulo, extinto Carandiru, o que faz da trajetória do 509-E um caso bem particular e singular na história do hip hopbrasileiro. “Tivemos de parar porque a nossa pele estava sendo arriscada no presídio. Conseguíamos licença para sair e gravar os dois discos mas muitas vezes não para nos apresentar ao vivo. Afro X foi libertado antes e eu cheguei a interagir por telefone, veja só. Sorte que a gente tinha um técnico de som bom, que batia tudo no tempo certo para eu cantar na cela. Só que os shows eram de noite, bem tarde. Tinha de cantar baixo para não ser ouvido por ninguém”, relembra Dexter. “A parada ocorreu porque esta era a responsabilidade do papel do estado com a gente. Quando a dupla estava na ativa, gerávamos emprego e estávamos mostrando o lado positivo”, explica Afro X. “Tudo ali dentro chancelava a nossa responsabilidade. Só que o sistema carcerário faz isso, dificulta. É justamente o Estado que acaba te jogando de volta para o lado do crime”, acrescenta Dexter. Vale lembrar que os dois ainda conseguiram realizar 157 saídas do Carandiru, sob forte escolta policial e autorização judicial, para fazer algumas apresentações até 2004.
Batizados Marcos Fernandes de Omena e Cristian de Souza Augusto, os rapperscumpriram o que deviam à sociedade e hoje comemoram estarem livres de toda a carga e o peso que uma prisão traz para as costas de um ser humano. “Ser ex-presidiário é como ser preto no Brasil. A sua história nunca vai mudar. Mas já pagamos a nossa pena. Nossa história foi dura mas valeu a pena. O 509-E é a prova de que, sim, é possível vencer pela arte”, manda Dexter. “O palco dá uma visibilidade maior, claro. Mas fazer parte do universo do hip hop significa atuar em diversas frentes. Não é só na música, mas também na literatura, no cinema, na ressocialização pela educação. O trabalho atrás das trincheiras é imprescindível e talvez até mais eficaz”, relata Afro X.
Para compor o set listdesta turnê foi selecionada uma espécie de best ofdos dois álbuns da dupla: Provérbios 13 (que conta com a participação de nomes como Mano Brown, Edi Rock, DJ Hum, MV Bill, DJ Luciano e DJ Zé Gonzales) e MMII DC (2002 Depois de Cristo), lançados respectivamente nos anos 2000 e 2002. A explicação, segundo os artistas, é a de que muita gente não pode vê-los cantar ao vivo antes, sobretudo fora de São Paulo, para onde não podiam seguir. Não há nenhuma composição inédita, entretanto. “Precisávamos resgatar este acervo todo. O que deixamos antes faz parte da nossa história. As músicas, os prêmios ganhos. Algumas faixas até transcenderam o nicho do rap e tocam hoje em rádios FM”, constata Afro X. Além da turnê por várias cidades brasileiras, marcada até o final do ano, os dois ainda fazem o trabalho de ativar as redes sociais e bancaram a coletânea #20 Anos, com 14 faixas, lançada em vários formatos (vinil, CD e plataformas digitais).
“No disco estão as gravações originais daquela época. Mas no show algumas das letras foram alteradas e revisadas. Estes versos foram escritos em um tempo que já passou. Outras frentes vieram e nós hoje reconhecemos estas lutas. A luta da mulher e a luta LGBT, por exemplo, também são lutas nossas. Unidos somos nós. Em algum momento lá atrás nós fomos ignorantes também. E vítimas de uma sociedade machista, intolerante e preconceituosa. Nós também tivemos de nos desconstruir para formar um novo 509-E”, explica Dexter. E Afro X completa que além da construção particular de uma nova dupla, eles também propõe algo coletivo nesta volta aos palcos. “Em cada cidade que passamos procuramos fazer interação com projetos artísticos e sociais, agir com o hip hop local. Precisamos fazer uma rede em prol de algo benéfico e necessário. A revisão de conceitos acontece de baixo para cima. Poderíamos muito bem estar a alheios a tudo isso, mas é sempre do povo que se emanam as coisas. Do jeito que elas estão, está fácil e conveniente para uma minoria.”
E assim a luta do 509-E vai continuar em 2020. Os dois afirmam que a retomada não vai parar em dezembro, com o fim da turnê, apesar do tempo passar a ser dividido com as carreiras solo de ambos no próximo ano. Novos shows acontecerão, mas será algo mais espaçado. Por enquanto só foi anunciada a participação no festival Lollapalooza Brasil, no primeiro final de semana de abril. Dexter, por sua vez, analisa a chegada do rap à condição de atração essencial dos grandes festivais brasileiros, como também se provou na mais recente edição do Rock In Rio. “É o rapchegando longe. Onde ele estiver será muito benvindo. De uns vinte anos para cá houve um crescimento gigantesco no mercado fonográfico. Agora não é só música, é uma indústria. Várias marcas procuram os artistas do gênero. Tudo construído à base do diálogo com o povo. Esta essência tem de estar viva sempre, virar pop mas manter o conteúdo. Quanto mais alto for o voo, mais precisamos nos lembrar disso. Afinal, a cultura hip hop nasceu para salvar vidas.”