Dupla francesa Cassius lança seu último álbum com o gosto amargo da despedida

Publicado em 27 jun 2019, às 00h00.

Cotação: ★★★½

A noticia daquele final da noite de 19 de junho deixou em choque músicos, jornalistas e admiradores da música eletrônica e daquele segmento do indie rock voltado para as pistas de dança. O músico, DJ e produtor francês Philippe Cerboneschi, de 52 anos da idade, morrera após cair da sacada de um apartamento na cidade de Paris. A queda, segundo relato de seu agente, teria sido acidental.

Sob o codinome Philippe Zdar, ele ajudou a escrever a história da música pop europeia nas últimas três décadas. Ao lado do parceiro e também músico, DJ e produtor Hubert Blanc-Francard, formou a dupla Cassius, cujo nome foi inspirado pelo boxeador americano Cassius Clay, que tornou-se mais conhecido como Muhammad Ali. Cerboneschi assinava como Philippe Zdar e Francard como Boom Bass. No final dos anos 1990, o Cassius foi catapultado para o mundo dentro do movimento French Touch, que revelou também outros grandes nomes da música pop francesa que flertava com batidas e equipamentos eletrônicos. Naquela turma estavam também Air, Saint Germain, Laurent Garnier e o Daft Punk, aquela outra dupla que viria a tomar de assalto as paradas mundiais anos e anos depois com o megahit “Get Lucky”. O primeiro álbum da dupla formada por Zdar e Boom Bass chegou às lojas em janeiro de 1999 e fez dois grandes hits nas pistas de dança do mundo inteiro: “Feeling For You” e a faixa-título “1999”.

Ao longo das duas últimas décadas, em paralelo, Zdar também assinou a produção de discos e faixas de outros importantes nomes, como os rappers Kanye West e MC Solaar, a cantora Cat Power e as bandas Beastie Boys, Hot Chip, Rapture, Two Door Cinema Club, Franz Ferdinand e Phoenix. Os dois últimos, curiosamente, fizeram pequenas turnês no ano passado pelo Brasil (inclusive Curitiba) com boa parte do repertório dedicado aos álbuns feitos em parceria com o francês.

Zdar começou a trilhar seu caminho nos estúdios de gravação nos anos 1980, quando fez alguns trabalhos como engenheiro de som em discos de Serge Gainsbourg. No começo da década seguinte, formou com o amigo e também DJ e produtor Etienne de Crécy o projeto Motorbass. Aqui eles apresentavam uma nova proposta para a house music, utilizando técnicas “importadas” do funk e do hip hop e mostrando um som mais sujo, cheio de distorções e compressões. Foi esta mesma base sonora que faria, poucos anos depois, a fama do Daft Punk e do Cassius.

Como produtor, Zdar ainda foi parceiro constante do conterrâneo grupo Phoenix, liderado pelo vocalista Thomas Mars, casado com a diretora de cinema Sofia Coppola. O álbum Wolfgang Amadeus Mozart, de 2009 e coproduzido por Philippe, é o mais conhecido da banda, tendo gerado clássicos como “1901” e “Lisztomania”. Já na carreira dos escoceses do Franz Ferdinand, ele foi determinante na guinada do quinteto rumo à música eletrônica. O álbum Always Ascending, de 2018, traz sintetizadores e programações com maior destaque nos arranjos dançantes outrora baseados somente em guitarras, baixo e bateria.

A morte do francês não só trouxe o baque e a surpresa para músicos, amigos e fãs, como também coincidiu com o lançamento de dois trabalhos dele. Desde a sexta, 21 de junho, estão disponíveis para compra e audição Dreems, o novo álbum do Cassius, e o primeiro trabalho em que o quinteto inglês Hot Chip convida produtores externos para atuarem em conjunto em algumas faixas. Zdar foi um dos nomes escolhidos para A Bath Full Of Ecstasy.

Em Dreems, o Cassius volta à sua melhor forma, depois de anos de carreira bissexta. Em 2016 havia lançado o quarto álbum da carreira após um longo intervalo de uma década sem novidades de estúdio. A sonoridade, contudo, era irregular, sem aquele punchcaracterístico para fazer as pessoas dançarem – talvez fruto do longo tempo de distanciamento profissional entre os dois integrantes. Dreemsparece ter nascido para recuperar o tempo perdido e a joie de vivrecaracterística dos trabalhos do duo. Ali estão prontas para emplacar diversas faixas, que contam com vocalistas convidados como Luke Jenner (Rapture), Mike D (Beastie Boys), John Gourley (Portugal. The Man), a inglesa Vula Malinga e, em dose tripla, a francesa Owlle.

A house“Nothing About You” já estabelece uma hipnose mântrica no início do álbum. “Fame” tem assinatura de nightclubs e o circuito da alta moda europeia para recriar o famoso slogande David Bowie nestes tempos de youtuberse celebridades sem muito a dizer em seus quinze minutos de fama. Na sequência, “Don’t Let me Be” mostra aquela nunace de soul arrasa-quarteirão, com refrão capaz de não deixar ninguém parado. Depois de um breve tempo para respiro, a funky “Rock Non Stop” reivindica a posição de pancadão-mor deste disco. Emendada com os vocais urgentes e cantofalados de “Cause Oui!”, então, estremece qualquer pista de bom gosto musical.

Entretanto, é no final do disco que o Cassius vai tirando o pé do acelerador e faz com que o ouvinte se lembre da tragédia ocorrida horas antes de Dreemsser lançado. Na faixa-título, um refrão doído passa a martelar diretamente a cabeça com a repetição constante da frase “nunca antes tive alguém como você ao meu lado”. Em “Walking The Sunshine”, a velocidade se torna ainda menor, a ponto de provocar delírios visuais na cabeça de quem escuta enquanto vai caindo a ficha de que Zdar não estará mais aqui para criar coisas novas. Por fim, uma nova versão instrumental de “Dreems” encerra o disco para deixar aquele gosto amargo na boca de que este é mesmo o ponto final do Cassius.

Dreems. Artista: Cassius. Produção: Hubert Boom Bass e Philippe Zdar. Faixas: “Summer”, “Nothing About You”, “Vedra”, “Fame”, “Don’t Let Me Be”, “Chuffed”, “Rock Non Stop”, “Cause Oui!”, “Dreems”, “Calliope”, “W18”, “Walking In The Sunshine”, “Dreems (Continuous Mix)”. Tempo total: 53:13. Gravadora: Universal Music. Lançamento mundial: 21 de junho de 2019.