Cotação: ★★★½
Existe até um termo na língua inglesa para definir isso. É o whodunit. Consiste em um jogo de detetive em que o criador da história espalha pistas e personagens acerca de um caso de assassinato e faz você querer se colocar no lugar do personagem detetive e juntar as peças de um quebra-cabeça para descobrir que matou e o porquê. Às vezes o mistério é ainda maior e nem se sabe quem vai morrer. Este é o combustível certeiro de tramas de suspense e mistério que gerou uma vertente de sucesso da literatura anglo-americana através de autores cultuados como Arthur Conan Doyle, Agatha Christie e Dashiell Hammett.
Entre Facas e Segredos segue a clássica linhagem destes romances que cultivaram milhões de fãs durante décadas e décadas e décadas. Escrito e dirigido por Rian Johnson (mais conhecido por ter assinado o excelente filme de ficção científica Looper: Assassinos do Futuro e ainda o mais recente capítulo da saga Star Wars, chamado Os Últimos Jedi), o filme envolve os dias que antecedem e sucedem a morte de Harlan Thrombey, um dos mais importantes escritores de histórias de mistério do século 20. Só que vai além do formato tradicional, incluindo também muito humor e uma certa dose de ação depois que os bastidores da família Thrombey vão sendo revelados para o espectador.
De início, o diretor e roteirista convida a todos a conhecer um por um os componentes do clã Thrombey. Milionários que se dividem entre a excentricidade e o estereótipo. Os depoimentos são dados aos investigadores policias que atuam no caso – com a ajudinha do detetive particular Benoit Blanc, contratado de forma misteriosa e anônima por alguém que vê a morte um crime em vez de um simples suicídio – com a interferência de alguns flashbacks. Com isso dá para entender melhor a dinâmica da casa e da família e como são construídas as relações entre os parentes. Em comum a quase todos eles o fato de serem dissimulados, gananciosos e, claro, mentirosos. Menos uma pessoa: a enfermeira e cuidadora de Harlan, a imigrante sul-americana clandestina Marta Cabrera. Afinal, ela possui uma estranha síndrome que a faz vomitar a cada vez que se vê obrigada a mentir – o que acaba lhe entregando a Benoit e, de certa forma, também a beneficia durante as investigações.
Com um superelenco (Daniel Craig, Ana de Armas e Chris Evans são os que possuem mais tempo em cena; a extensa família é completada por nomes como Jamie Lee Curtis, Michael Shannon, Christopher Plummer, Toni Collette, Don Johnson e Katherine Langford), montagem ágil, narrativa que não cansa apesar de tanto vai-e-volta, fotografia refinada, Entre Facas e Segredos ainda acerta em cheio nas críticas sociopolíticas atualíssimas. Johnson, afinal, não economiza meias-palavras para tratar de xenofobia, imigração ilegal, fascismo da extrema direita e sua ligação intrínseca com a manipulação inescrupulosa de tecnologia da comunicação – o que confere à obra uma certa contemporaneidade apesar de toda a ambientação gótico-vitoriana da mansão do patriarca dos Thrombey.
Tudo isso faz com que a duração de duas horas e dez minutos, que poderia tornar-se algo maçante, passe voando enquanto o espectador se deleita com o aprofundamento no caso que envolve a morte de Harlan e todas as mais profundas e esquisitas entranhas de seus descendentes e possíveis herdeiros de sua grande fortuna acumulada com a publicação de diversos livros através de sua própria editora. Mesmo o fato de muita coisa acabar ficando óbvia e poder ser deduzida por espectadores mais atentos ainda no decorrer da trama, o filme chega ao final com gás suficiente para não se entediar nem tirar os olhos de Daniel Craig (que interpreta um Blanc sóbrio e perspicaz, mostrando que pode se desvencilhar fácil da imagem de 007 no futuro bem próximo) e sua imersão na vida e nos detalhes intrigantes de cada um dos possíveis envolvidos diretamente no suposto assassinato daquele fim de noite de festa na mansão Thrombey.
Chegando agora aos cinemas brasileiros, Entre Facas e Segredos revela-se uma excelente opção para quem tem vai pop mas não suposta mais a enxurrada de CGI e efeitos especiais dos blockbusters que costumem ocupar as salas de cinema neste mês de início de férias escolares. E, o que é melhor, faz com que tanto adultos como jovens e adolescentes possam identificar ali na trama coisas referentes ao seu mundo e ações cotidianas.
Entre Facas e Segredos (Knives Out, Reino Unido/EUA, 2019). Direção e roteiro: Rian Johnson. Com Daniel Criag, Chris Evans, Ana de Armas, Jamie Lee Curtis, Michael Shannon, Don Johnson, Toni Collette, LaKeith Stanfield, Christopher Plummer, Katherine Langford, Jeaden Martell, Rikki Lindhome, Edi Patterson, K Callan, Noah Segan e Frank Oz. Paris Filmes. 130 minutos. Estreia nos cinemas brasileiros: 5 de dezembro.