O fim de semana marca o retorno de um dos mais importantes grupos teatrais do país à capital paranaense. Nas noites de sábado e domingo, o Galpão apresenta no Guairinha o espetáculo Outros (veja mais informações sobre ingressos e horários aqui), marcado por palavras-chave como alteridede e poesia. Vigésima quarta montagem da companhia mineira, esta apresenta uma nova parceria com o diretor curitibano Marcio Abreu e, como curiosidade, traz a trilha sonora executada ao vivo e pelos próprios atores e ainda a interpretação em libras.
Durante o processo de pesquisa para a montagem, os atores e atrizes se debruçaram em textos como “Frigorífico”, do francês Joel Pommerat, e “Os Embebedados”, do russo Ivan Viripaev. As leituras contribuíram para o direcionamento do trabalho e serviram de material, junto com outros exercícios, para a criação da dramaturgia, elaborada em conjunto por Marcio Abreu e os atores Eduardo Moreira e Paulo André. O caminho levou a uma estrutura dramatúrgica que foi além da extensão da palavra para conseguir expressar o que extrapola a fala, dando espaço e importância a outras formas de linguagem, como o silêncio, por exemplo. O resultado é uma peça tecida com os rastros de memória presentes não só no discurso, mas nos corpos das atrizes e atores que ocupam a cena.
O Ric Mais conversou com Abreu sobre esta sua nova experiência ao lado do Galpão, iniciada há três anos com a peça Nós.
O que significa para você estar junto com o Grupo Galpão nessa montagem?
Esta é a continuidade de um trabalho que começou com o Nós, em 2016. É o desdobramento de um trabalho de pesquisa que envolve as questões que eu venho trabalhando como dramaturgo e como diretor ao longo dos anos e significa um encontro também com a trajetória do grupo Galpão e como as minhas questões estéticas e éticas afetam o grupo e vice-versa, como o grupo me atravessa. Eu que tenho uma trajetória como artista que inclui ser público do Galpão, ser afetado por eles. Significa também uma amizade artísticas e uma parceria de vida com esses artistas incríveis.
Como e quando surgiu o convite para trabalhar em parceria com o Galpão?
O convite veio surgindo ao longo de várias conversas. Eu acredito que tenha sido em 2014, quando a gente teve várias conversas para entender como se daria isso, como seria feito esse trabalho. Esses encontros foram se dando aos poucos. Eu fui a Belo Horizonte fazer uma reunião com eles. A gente foi entendendo as datas até que foi possível começar a criação para o espetáculo Nós. Daí a sequência para Outrosfoi imediata. Um desdobramento que tanto eles como eu sentimos que seria bom, frutífero, natural.
O que o grupo traz de novo neste espetáculo, que se diferencia de outros trabalhos?
Outros traz de elemento específico um aprofundamento nas relações com o campo da performance. Esse trabalho já havia sido iniciado no Nós porque é uma referência que eu trago de outros trabalhos que eu venho criando. Aqui eu consegui promover o encontro do Galpão com a Eleonora Fabião, que é uma artista muito próxima de mim. Eles fizeram um workshop de uma semana. A gente criou várias performances em espaços públicos, individuais e uma coletiva que fizeram fizemos em Belo Horizonte e São Paulo. Essas performances foram base para a pesquisa do Outros, que se baseia em dois eixos: alteridade e poesia. Outro encontro importante foi com a professora Leda Maria Martins, radicada em Minas. Ela é uma pesquisadora de performance, performance negra, teatro do absurdo e Nelson Rodrigues, uma grande artista e pensadora brasileira que tinha contribuído muito para o processo de criação de uma outra peça minha, Preto. E também foi uma proposta de encontro com o Galpão lá no início desse processo. Esses encontros e performances foram muito importantes também. No Outros existe uma radicalização ainda maior do que Nós com o campo da performance e também da dança. A Kenia Dias, que é uma pessoa da área da dança e do teatro que mora em São Paulo, também veio a contribuir com esse trabalho.
No que a leitura de textos de autores contemporâneos como Pommerat e Ivan Viriapev contribuiu para o resultado final? Você já havia trabalhado antes com a obra de Viriapev em Oxigênio. E com a obra de Pommerat em Esta Criança…
Eu diria que há uma linha direta nestes textos que levem a um resultado final. A leitura de textos de outros autores tem função de nutrir um pouco os nossos pensamentos e o nosso trabalho criativo. Foco muito no processo de nutrir o nosso campo de referências e a nossa convivência. É muito difícil dizer como isso está presente no resultado final. Elas não são visíveis de uma maneira tão objetiva. Não acho que seja perceptível a olho nu.
Como esta peça se relaciona com as questões da contemporaneidade?
Outros, assim como Nós e todas as outras que tenho feito, são maneiras de testemunhar o nosso tempo. Todas as questões e temas que emergem de uma estrutura polissêmica e polifônica são questões da atualidade, da contemporaneidade. A peça é uma estrutura de certa maneira aberta mas muito precisa no que diz respeito à sua linguagem e que reflete e faz emergir através dos corpos que estão ali presentes e de uma articulação de texto, com eu disse polifônica e polissêmica, que tem uma questão sonora de esgotamento da palavra para transitar por uma experiência mais sensorial através de estruturas mais corporais que integram a dramaturgia da peça que são totalmente vinculadas com as questões do nosso tempo.
A alteridade é um dos grandes ingredientes para este Século 21?
Sim, com certeza. Pensar o outro, entender-se na perspectiva da pluralidade de modos, de existências. É talvez a questão crucial de nosso tempo.
Quem são os outros neste espetáculo?
O outro é sempre uma perspectiva e é sempre diferente para cada pessoa, cada circunstância social ou cada momento histórico. É sempre dinâmico. O outro é sempre uma pergunta. Então essa pergunta se dirige também a você.
Como a dramaturgia transpassa o texto e chega na fisicalidade da voz e do corpo dos artistas?
Eu mencionei antes a estrutura total da dramaturgia. Articula a palavra em discursos múltiplos que têm uma certa simultaneidade, diálogos que se entrecruzam e formam uma teia de palavras evocando e fazendo emergir várias histórias e vozes em convivência e se intensificando sonoramente até o esgotamento. Então é quase como se a gente, de algum modo, refletisse a falência dos discursos como lugares de poder. E depois disso o que vem? Que corpos sobrevivem a isso? E como que esses corpos se reorganizam e afetam mutuamente para gerar possibilidades de convivência e permanência.
A insuficiência das palavras, o silêncio e o vazio também se fazem presente neste espetáculo? Hoje se fala muito por aí, pessoalmente e pela internet, para tão pouca coisa de fato?
Uma espécie de enfermidade do nosso tempo. O que se faz na peça é afirmar a presença desses corpos e a possibilidade de vibração dos sentidos e das falas que a própria singularidade de cada corpo é capaz de afirmar. De certa maneira, então, são corpos inscritos e que se inscrevem a experiência de convivência entre eles e com o público. Neste sentido, a ausência da palavra enunciado, da palavra verbalizada, da palavra articulada em discursos proferidos é muito importante também para gerar um campo de escuta e de percepção sensível do outro. A fisicalidade se afirma também nesta peça.
Resistência também é outra palavra-chave deste espetáculo. Como você, pessoalmente, lida com estes tempos duros e sombrios?
Resistência e existência são palavras-chave não só neste trabalho como na história do grupo Galpão e também na minha história. Outros é uma peça que afirma a existência desses corpos, dessas vozes e dessas vidas em constante afirmação na arte. Então é a afirmação da potencia real da vida na arte. A arte não está alheia à vida, é uma perspectiva de vida. Não é um lugar em que se afirma só um detalhe, uma possibilidade de privilégio. Pensar a arte como dinâmica real de vida e direito de todas as pessoas. A arte é uma perspectiva de entender a vida. É nesse sentido que as histórias desse grupo e minha se afirmam e as estruturas que a gente vem criando em cada uma das obras.
Quais são as principais armas para combater a ignorância que predomina em nosso dia a dia, tanto das pessoas comuns quanto daquelas que detém algum tipo de poder, não apenas o político?
Uma das principais enfermidades de nosso tempo é essa onda de ignorância usada como arma. Essa horda não tão grande de pessoas dominadas por esses discursos de poder que usam a ignorância como arma sem qualquer pudor. A gente vive uma era de vulgaridade e culto à ignorância. Não aprendemos ainda quais são as armas para combater isso mas, sem dúvida, sem dúvida afirmar o lugar da arte como um lugar de existência no real é um caminho. Digo o lugar da arte não como privilégio mas como perspectiva de vida de todas as pessoas. E a gente vê isso acontecendo no país inteiro, em diversos lugares e camadas da sociedade essa ideia da arte como privilégio branco já morreu de certa maneira. A gente vê como pulsa a cultura nas periferias das cidades do Brasil inteiro. E isso é muito, muito, muito forte. Talvez combater essa virulência da ignorância passa por distribuição de conhecimento, convivência com valores múltiplos e corpos diversos e com a possibilidade de vibrar na diferença na diferença e com valores que passam por brilho desses corpos, por vibração e por arte, sem sombra de dúvida.
Apesar de morar há alguns anos no Rio de Janeiro e desenvolver trabalhos com artistas nacionais, o que você ainda carrega consigo de curitibano no seu trabalho e do teatro da cidade também?
Eu passei em Curitiba um período importante de minha formação, que foi a adolescência. Então, fui influenciado por um momento da cidade em que a gente convivia nos espaços públicos, havia uma presença muito grande dos poetas, músicos, das pessoas do teatro, da dança e da literatura. Eu carrego da cidade o vigor dos seus artistas, sua arte e seu pensamento e do seu sentido de menção pública e que não tem nada a ver com essa imagem com essa imagem que ela carrega hoje como o lugar de uma política de quinta categoria e de pessoas que usurpam de seus poderes oligárquicos. Curitiba, de alguma maneira também tem isso, essas famílias que se perpetuam no poder, esses juristas entre aspas espúrios que vão se criando nesses pequenos feudos violentos e de acordo e perpetuação no poder. Eu conheço bem também esse aspecto mas Curitiba não é só uma coisa, assim como nenhum lugar é. Então, prefiro lembrar e reconhecer em mim o vigor de uma loucura maravilhosa dos artistas que eu pude conhecer e de uma realidade da vida na cultura e na arte nos anos 1990, que foram capazes de deixar marcas em mim e no artista que eu sou. Mas é muito importante também olhar para uma certa Curitiba de hoje muito triste e combater esse movimento obscurantista que se alimenta numa espécie de cidade que a gente não quer.