História de causa injusta e quase impossível nos tribunais chega aos cinemas
Cotação: ★★★½
Num país onde um de seus maiores símbolos é a estátua que representa a liberdade, de nove condenados na Justiça apenas um consegue provar a inocência. Nesse mesmo país onde Martin Luther King foi assassinado por lutar pelos direitos civis dos negros e cujos cidadãos elegeram, décadas depois, um presidente afrodescendente, as correntes da escravidão ainda são visíveis na forma do racismo institucionalizado.
Escravidão e segregação racial, inclusive, são temas por vezes explorados pelo cinema recente de Hollywood. Tanto é que Selma – Uma Luta Pela Igualdade foi indicado ao Oscar de 2015, e Doze Anos de Escravidão levou o prêmio principal em 2014. Três anos depois, em meio à polêmica campanha #OscarSoWhite (#OscarTãoBranco), que pedia à academia mais representatividade negra entre os indicados, Mahershala Ali tornou-se o primeiro muçulmano a levar a estatueta dourada como melhor ator coadjuvante por sua atuação em Moonlight: Sob a Luz do Luar. No ano passado, ele repetiu o feito por sua atuação em Green Book, cuja temática também é racial.
O fato é que o preconceito ainda está longe de desaparecer das entranhas da sociedade norte-americana, onde o negro sempre sofreu as consequências no lugar do branco (como no Brasil, onde preto e pobre é quem paga o pato com suas devidas proporções culturais, claro). Luta por Justiça, que estreia no circuito nacional nesta quinta-feira, pode até passar longe do Oscar em 2021, mas o personagem interpretado por Jamie Foxx, chamado Walter McMillian e também com a alcunha de Johnny D, sintetiza em poucas palavras essa condição histórica numa conversa com seu advogado Bryan Stevenson (Michael B. Jordan): “ser negro é já nascer culpado”. Ou seja, se provar a inocência de um negro é uma das tarefas mais árduas de qualquer advogado, quiçá sendo um advogado negro.
O longa dirigido pelo havaiano Destin Daniel Cretto é baseado no livro autobiográfico de Stevenson, intitulado A Story of Justice and Redemption. Após se formar em Harvard, ele decide, com base em questões morais e familiares, dedicar sua carreira a defender prisioneiros no corredor da morte e que, até então, não vinham recebendo assistência legal de forma adequeada.
Stevenson, porém, se destaca. Por também ser negro e sofrer na pele a injustiça, ele cria rapidamente empatia com seus clientes, entre eles Johnny D, preso e acusado pelo assassinato de uma jovem branca. O advogado dispensa uma previsível carreira lucrativa para abrir seu escritório com a ajuda da psicóloga Eva Ansley (Brie Larson) no condado de Monroe, no estado do Alabama. Foi em Monroeville que nasceu a escritora vencedora do Pulitzer Harper Lee, autora do clássico literário To Kill a Mockinbird, título que no Brasil foi transformado em O Sol é Para Todos. Leitura essencial a todo ser humano, especialmente os estudantes de direito, esta é provavelmente a obra que traz o tema de desigualdade racial mais lida do planeta, tendo sido adaptada para os cinemas com Gregory Peck no papel do advogado Atticus, acusado de estuprar uma moça branca. Quando Stevenson chega a cidade, os moradores insistem para quem ele visite o museu dedicado a To Kill a Mockinbird. Em vez de visitar o passado, o advogado recém-formado olha adiante e trabalha para que a história não se repita e pais de família não sejam eletrocutados por conta de autoridades corruptas.
Conforme a trama vai se desenrolando, o personagem de Michael B. Jordan percebe que é mais fácil confiar em Deus (como na frase do tribunal “In God we trust”) do que nos brancos. A grande virada acontece, porém, quando a imprensa entra na jogada e o caso de Johnny D ganha visibilidade nacional ao ser esmiuçado pelo 60 minutes, um dos programas jornalísticos de maior credibilidade nos EUA. É interessante notar a semelhança entre os papeis de advogados e jornalistas investigativos: o de esmiuçar o caso, ouvindo todos os lados, a ponto de não deixar nenhuma brecha.
Luta por Justiça traz boas atuações, mas é aquele filme de tribunal arrastado e personagens estereotipados. Com suas quase 2h20, parece até um processo judicial, com seus recursos e estratégias intermináveis até que se chegue ao veredito final. A direção de Destin não inova na forma e claramente prioriza a atuação dos atores. O experiente Foxx só começa a crescer no papel no final do filme e sua atuação como o condenado à pena de morte não chega aos pés de personagens de outrora como Ray Charles e Django, por exemplo. Quem brilha mesmo é o versátil Michael B. Jordan, cujo olhar consegue transmitir o medo e indignação ao atuar numa causa praticamente impossível.
Ainda assim, histórias reais como esta são necessárias no cinema para frisar que a justiça é simbolicamente cega. No sentido da imparcialidade e não por cerrar os olhos para cor, credo ou sexo.
Luta por Justiça (Just Mercy, EUA, 2019). Direção: Destin Daniel Creton. Roteiro: Destin Daniel Creton e Andrew Kanham. Com Jamie Foxx, Michael B. Jordan, Brie Larson. Warner Bros. 137 minutos. Estreia nos cinemas brasileiros: 20 de fevereiro.