João Gilberto Prado Pereira de Oliveira morreu aos 88 anos em seu apartamento, no bairro carioca do Leblon, na tarde do último sábado, 6 de julho de 2019. Considerado o principal artista de toda a música brasileira, João ajudou a formatar o que o mundo viria a conhecer sob o nome de bossa nova. Inovador, ousado e genial, ele reunia três músicos em um só. O vocal pequeno, suave, baixinho, tirou o estigma dos vozeirões dos cantores das épocas áureas do rádio, que soltavam o gogó diante do microfone e faziam os auditórios estremecerem  dos seus dós de peito. Na mão esquerda, desenhava complexas harmonias ao violão para acompanhar as melodias doces e grudentas. Na mão direita, sintetizava no mesmo instrumento, toda a batida do samba: nas primeiras cordas reproduzia o ritmo do tamborim enquanto o dedão, nos bordões, percorria a marcação do surdo.

Ao juntar estas três inovações, João Gilberto transformou a música popular brasileira e depois dele nada mais seria a mesma coisa. Todos artistas que vieram depois deste baiano radicado no Rio de Janeiro no decorrer dos anos 1950 devem – e muito – ao ídolo-mor do que ficou conhecido pela sigla MPB.

Para homenagear João, aqui vai uma lista das dez mais importantes gravações feitas por ele ao longo da carreira.

10) “Bim Bom” (1958)

Um das duas únicas composições assinadas por João Gilberto, que fez seu refrão repleto de “bim e “bom” como se a sonoridade fosse a representação do ritmo das águas do São Francisco – vale lembrar que João nasceu na cidade de Juazeiro, na Bahia, e passou a infância em uma casa à beira do rio. A gravação foi realizada em julho de 1958 (com direito à percussão do genial baterista Milton Banana, ajudando a subverter em samba o que nasceu como um baião) e lançada em compacto 78 rotações um mês depois, como lado da música “Chega de saudade”. No ano seguinte, a faixa também foi incluída no álbum de estreia, também batizado Chega de Saudade. Esta é considerada a primeira música da bossa nova, já que a canção havia sido composta em 1956.

9) “Coisa Mais Linda” (1961)

Escrita por Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, esta é uma espécie de resumo eficaz em três minutos do que fora toda a bossa nova. Suavidade vocal, batida sincopada que não deixa nenhum pé parado quando estamos sentados, letra de puro romantismo e a polaroide de um Rio de Janeiro paradisíaco e que, infelizmente, hoje não passa mais de mera utopia. Faixa do terceiro álbum da carreira, batizado com o nome do cantor.

8) Retrato em Branco e Preto (1977)

Tom Jobim compôs a instrumental “Zingaro” em 1965 tendo em mente a história de um músico cigano que precisa penhorar seu violino e fica sem ter seu objeto de trabalho para ganhar dinheiro no dia a dia. Três anos depois, Chico Buarque escreveu a letra tendo a atenção de inverter a ordem das cores da expressão no título sob a justificativa de que “a única palavra que rima com branco na língua portuguesa é tamanco”. Os versos misturam romantismo e dor-de-cotovelo. A melodia brinca com uma gangorra agudos e graves nas tonalidades vocais, a qual João Gilberto encara com uma naturalidade que chega a arrepiar. A gravação de estúdio está no cultuado álbum Amoroso, feito em meados dos anos 1970 para o mercado norte-americano e no qual João é acompanhado por arranjos orquestrais.

7) “Sampa” (1991)

João já havia cantado Caetano Veloso anteriormente: no especial feito para a Globo em 1980, “Menino do Rio” esteve no repertório. Mas, sem dúvida, esta é a mais importante homenagem do ídolo a seu grande fã, também baiano. Justamente o mesmo Caetano que arquitetou toda a revolução artístico-intelectual da Tropicália para libertar a música popular brasileiro do engessamento de forma e conteúdo provocado pela bossa nova naqueles primeiros anos da década de 1960. A letra de “Sampa”, gravada por Veloso em 1978 no álbum Muito, descreve as primeira impressões e sentimentos do autor ao chegar na metrópole paulistana para morar, já durante o movimento tropicalista. A releitura do mestre foi feita para o álbum João, lançado em 1991 por ocasião de seus 60 anos de idade, rompendo um silêncio fonográfico de uma década. Aqui JG fez de novo suas traquinagens, alterando métrica (que já era complicada em virtude do tamanho de alguns versos originais de Caetano) e melodia sem o menor pudor de esbarrar em qualquer possibilidade de desencaixá-las da precisão da batida do violão.

6) “Águas de Março” (1973)

Aqui está mais um belo exemplo de como João entorta como ninguém a métrica e a melodia dos versos e passa imune a qualquer erro, com aquele sorriso interno que desarma a tensão de todo e qualquer espectador. Isso tudo com o requinte realizar uma acelerada batida do violão. Por isso, muita gente consideram a sua gravação deste clássico da MPB como “a definitiva”, superando até mesmo o registro inicial da canção de 1972 (realizado pelo autor Tom Jobim para um disco distribuído pelo jornal alternativo cultural Pasquim) ou o dueto-jogral descontraído de Tom e Elis em 1974.

5) “Samba de Uma Nota Só” (1960)

Para uma melodia simples, uma harmonia bem complexa. Este é o segredo desta composição de Tom Jobim e que cai como uma luva no malabarismo da mão esquerda de João ao violão. A letra em português, feita por Newton Mendonça, vai descrevendo exatamente o que acontece durante as duas variações melódicas da música: a primeira dividida em duas notas (uma mais grave, outra mais aguda) e a segunda realizando o caminho oposto (subindo e descendo a escala). Gravada para o segundo álbum da carreira, O Amor, o Sorriso e a Flor,este é um dos grandes exemplos de como a bossa nova conseguiu ser musicalmente rica ao explorar

4) “Wave” (1977)

Gravada para o álbum Amoroso, a versão de JG para mais um clássico de Tom Jobim soimente tornou sucesso nacional três anos mais tarde, quando foi incluída na trilha sonora da novela Água Viva – era o tema do protagonista da história, Nelson Fragonard, personagem interpretado por Reginaldo Faria. Talvez por isso até hoje a música seja associada por muitas pessoas a imagens de praia e verão. Originalmente a letra foi composta em inglês – Frank Sinatra a cantou no seu disco de 1971. Mas a versão em português, mais uma vez, revela o mais perfeito descompasso entre métrica vocal e a batida do violão que só João sabia dominar.

3) “Desafinado” (1959)

Mais um marco do álbum de estreia de João. Mais uma metaparceria de tom Joim com o letrista Newton Mendonça, que faz dos versos um grande trunfo para comentar aquilo que o ouvinte acompanha através da música. Desta vez, a letra é uma suprema ironia frente aos comentários dos detratores da bossa nova, sobretudo os críticos musicais da época, que julgavam como desafinados os cantos das melodias encaixados nas harmonias complexas dos acordes (“Se você disser que eu desafino, amor/ Saiba que isso em mim provoca imensa dor/ Só privilegiados têm ouvido igual ao seu/ Eu possuo apenas o que Deus me deu/ Se você insiste em classificar/ Meu comportamento de antimusical/ Eu mesmo mentindo devo argumentar/ Isto é bossa nova, isto é muito natural”). Para um artista iniciante como João Gilberto, a decisão de gravar a melodia torta e estranha de “Desafinado” chega a ser um libelo supremo de suas esquisitices musicais.

2) “The Girl From Ipanema” (1964)

Quando a bossa nova começou a invadir os Estados Unidos no início dos anos 1960, era chamada de jazz samba. Um dos mais ferrenhos adeptos à nova musicalidade foi o saxofonista Stan Getz, que entre 1962 e 1963 lançou quatro álbuns dedicados ao gênero. Em 1964 ele foi direto à fonte e convidou o criador do gênero para fazer um disco em parceria. A faixa de abertura ficou a cargo de “Garota de Ipanema”. Para lançar a composição em inglês, foi convocado Norman Gimbel que a transformou em “The Girl From Ipanema”, passando aos americanos descrição semelhante da mulher mais linda e cheia de graça que chamava a atenção de todo mundo quando andava pela famosa praia carioca. João cantou os versos originais de Vinícius de Moraes. Sua primeira esposa, a cantora Astrud Gilberto, fez os vocais da nova versão. A canção se tornou um dos mais estrondosos sucessos naquele ano, chegando a dar a Stan e João dois importantes prêmios Grammy no ano seguinte: álbum (Getz/Gilberto desbancou concorrentes como a trilha sonora do filme A Pantera Cor-de-Rosa, que, por sinal, tinha o também brasileiro Waltel Branco trabalhando na equipe do maestro Henry Mancini) e gravação do ano (superando os Beatles e sua “Yesterday”). Estava consolidado o sucesso comercial da bossa nova em todo o planeta. Estima-se que até hoje “The Girl From Ipanema” seja a segunda canção mais regravada do mundo, ficando atrás apenas da mesma “Yesterday”.

1) “Chega de Saudade” (1958)

O principal pilar do gênero, a pedra de roseta da bossa nova, a primeira canção lançada por João Gilberto, como um compacto de 78 rpm em 1958. Existe uma história engraçada por trás da contratação de JG como artista vocal. Ele havia sido contratado para acompanhar ao violão, em duas faixas, o registro de Elizeth Cardoso, que preparava, em abril do mesmo ano, pelo pequeno selo Festa, o álbum Canção do Amor Demais, somente com músicas de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Na hora da gravação, porém, João passou a implicar com o jeito de cantar de Elizeth, criando clima de tensão e apreensão no estúdio. A cantora não deu atenção aos palpites do músico, que achava que a interpretação estava grandiosa e reverente demais para uma música que falava sobre uma desilusão amorosa banal. O produtor do disco, atento às dicas e ao potencial inovador do baiano, conseguiu um contrato para João na EMI-Odeon, por onde ele lançou primeiro o compacto com “Chega de Saudade”. Na segunda semana de março chegava às lojas o primeiro álbum, batizado pela faixa de mesmo nome e produzido por Tom Jobim. O que veio depois entrou para a História.

8 jul 2019, às 00h00.
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