De volta ao buraco sem luz
Li O Mito da Caverna, de Platão, nos meus distantes 14 anos, nas horas obrigatórias de leitura na biblioteca do Instituto Redentorista Santos Anjos, em Campina Grande. Tenho uma frustração e uma inveja nessa leitura de pré-adolescência. Frustração por não ter me dedicado mais ao estudo de grego antigo para ler o texto magnífico no original. Inveja do ortopedista pediátrico Luiz Henrique Mandetta, que se orgulha de havê-lo lido 20 vezes. Como me disse certa vez Jorge Luís Borges, ler é uma atividade fútil. Útil é reler os bons textos. E estes são tão poucos…
Revelando um espírito refinado que não imaginava num profissional de medicina, normalmente mais dedicado à atualização de seus conhecimentos científicos do que à filosofia antiga ou mesmo à literatura, o ainda atual ministro da Saúde, sabe Deus até quando, aproveitou bem cada vez que abordou o gênio ateniense quando o usou à hora certa e na data exata. Citou o clássico da filosofia na entrevista coletiva em que contou ao País que esvaziara as gavetas do gabinete ministerial ao saber que seria demitido na segunda, à tarde, e, depois, voltara a enchê-las depois da desistência do chefe de pô-lo para fora do cargo público.
A meio século de haver folheado as páginas de papel bíblia nos ermos de Bodocongó, e com a memória prejudicada por velhice, diabetes e ameaça de coronavírus à porta, ainda me lembro do impacto daquela leitura única em todos os sentidos da palavra. A tragédia do homem primitivo que rompeu as cadeias das trevas do buraco em cujas bordas só via sombras, para conhecer o Sol, tinha o condão de transformar em fábula ancestral a rotina burocrática de uma atividade rasteira como é a política, atingindo a sordidez no momento por ele vivido. Séculos depois de concebida, a saga do descobridor da luz solar, que ilumina e higieniza, morto por seus antigos companheiros de redução a imagens caprichosas de chama e sombra, repetiu o embate milenar entre civilização humana e barbárie pré-histórica.
Ao sair do encontro com o carrasco após este desistir de lhe decepar a cabeça no cadafalso, o quase ex-ministro fez mentalmente a 21.ª leitura da obra platônica e se vingou, sem que o outro sequer sonhasse com isso, com a suprema humilhação de torná-lo protagonista de um conto terrível e que ainda assim jamais entenderá a dimensão da luta entre conhecimento e ignorância. O presidente da República é um homem simplório. Saiu do Exército, que diz venerar, sem fazer um curso de estado-maior, num acordo de cavalheiros em que nenhuma das partes agiu como cavalheira. Numa solução típica de instituições fechadas em copas e galões, a Força expeliu-o do convívio dos camaradas de armas na patente de capitão para evitar que fora da caserna se conhecesse o delito do oficial acusado de terrorismo.
Na reserva a decisão foi fundamental na formação do caráter do que não foi expulso. Seu herói militar não é Churchill, ex-lorde do almirantado que ganhou a 2.ª Guerra Mundial, nem De Gaulle, general francês que comandou a resistência de seu país, a França, ao abrigo de um aliado que foi ao longo da História o maior inimigo, a pérfida Albion. Mas um reles torturador da guerra suja em que as “gloriosas” Forças Armadas se meteram num banho de sangue de inimigos sem nenhuma chance de vencê-las.
O indesejado fez carreira como sindicalista fardado e parlamentar do mais baixo clero com pretensão a reverter na democracia, que surgiu dos escombros do gigante de pés de barro da ditadura militar, a má fama com justiça conquistada nos anos de chumbo. Sua homenagem ao réprobo dos porões da Rua Tutoia, coronel Brilhante Ustra, ao votar na sessão de julgamento do impeachment da inimiga acusada pelos que os convidaram a retirar-se dos quartéis no processo de expulsão, Dilma Rousseff, pela mesma falta, terrorismo.
A demissão que não houve resultou de um episódio rastaquera de ciúme vulgar. O ainda ministro da Saúde gravou um depoimento numa live – meio de comunicação favorito do capitão reformado por indisciplina -, protagonizada por ídolos da música sertaneja, entre os quais a dupla Jorge e Mateus. Era só disso que precisava o chefe para decidir livrar-se da ambição desmedida ao estrelato do subordinado. Convenhamos que nem chega perto de um delito como o terrorismo, nem de um deslize como a indisciplina. O inesperado desfecho, com a recondução do ministro à pasta, provocado pelo histérico temor do chefe de uma perspectiva de impeachment por crime de responsabilidade, após a intervenção de generais, parlamentares e ministros do STF, trouxe, contudo, à luz, quando já anoitecia no segundo dia da Semana Santa, a revelação de algo muito mais grave do que o ato.
Tendo jurado fidelidade à lei e à ordem em janeiro de 2019, Jair tem atuado como o Messias do retorno ao escuro cavernoso, com as labaredas desenhando nas pedras do buraco uma súcia que não fora exposta ao Sol: um bando dedicado à desmoralização do conhecimento acumulado e à consagração de um passado que, zumbi, surgiu das cinzas da fogueira em que Giordano Bruno foi imolado. Bolsonaro lidera quem acredita na Terra plana em plena era das viagens espaciais, que a revelaram redonda, e imóvel, amaldiçoando o eppur si muove de Galileu Galilei. Como seu diabinho profano de orelha, André Mendonça, nega a evolução das espécies de Charles Darwin. Prefere a superstição à ciência. E, embora tenha virado caixeiro-viajante da cloroquina por mero oportunismo de marketing político genocida, considera a descoberta de Alexander Fleming instrumento de doença, não certeza de imunidade a bacilos e vírus. É isso!