Enquanto o jornalismo perde “capacidade instalada” no Brasil, com a redução do tamanho das redações e do volume de conteúdo publicado, governantes em busca de promoção pessoal ocupam as redes sociais e buscam dominar o debate público, sem a mediação que antes era feita pela própria imprensa. As relações entre esses dois fenômenos e as consequências que eles trazem para a democracia são o pilar central do recém-lançado livro Jornalismo em Retração, Poder em Expansão – A Segunda Morte da Opinião Pública.
De autoria de Ricardo Gandour, diretor executivo da Rede CBN e ex-diretor de Conteúdo do Grupo Estado, a obra é a primeira a quantificar a crise dos jornais no País, em termos de perda de mão de obra e de páginas impressas. Pesquisa que fez parte da dissertação de mestrado do autor na Universidade de São Paulo (USP), cuja amostra incluiu veículos que concentravam 60% da circulação nacional, mostrou que oito em cada dez jornais tiveram redução no número de profissionais entre 2007 e 2016. Somente 13% e 3%, respectivamente, relataram ter mantido ou aumentado o número de jornalistas em atividade.
A pesquisa também monitorou a atividade digital dos governadores – tomando-os como representativos do universo político – no Facebook em três períodos distintos. Entre 2013 e 2016, o número de governadores ativos na rede social passou de 16 para 25. O número médio diário de posts por governador subiu 91% no mesmo período. Para Gandour, políticos passaram a usar a plataforma como “uma espécie de diário não oficial, ou oficioso”.
Retração
“Não se trata apenas de mera inversão de papéis, mas de uma perda de terreno da imprensa no seu papel de mediadora e organizadora do ambiente informativo”, escreveu o autor. “Terreno cedido à conexão direta entre a fonte – no caso, os governos – e os interessados – os cidadãos, público em geral.”
Esse contexto, para Gandour, faz com que os detentores do poder político desqualifiquem a imprensa e ampliem os ataques a seu papel fiscalizador. “Além de acelerarem o uso ostensivo das redes sociais como forma de comunicação direta, os governantes brasileiros passaram, ao mesmo tempo, a atacar a imprensa estabelecida quando da publicação de informações incômodas.”
Outra consequência da comunicação direta, sem mediação, é a existência de incentivos para que os governantes atuem para agradar à parcela de sua base eleitoral mais engajada e estridente, ou seja, a mais radical. “A inversão de papéis entre imprensa e redes sociais, ou na busca da manutenção do poder, aumenta a intolerância e a polarização”, afirma Gandour.
Ao abordar o fenômeno das notícias fraudulentas, as chamadas fake news, Gandour observa que seus difusores procuram imitar o formato dos conteúdos da imprensa, sem, no entanto, levar em consideração o método jornalístico.
“É o método estruturado que dá corpo e trilho para que a atitude jornalística se transforme e resulte em algo de interesse público, e sobretudo palatável ao público”, diz o texto. “É a prática do método que diferencia um texto jornalístico de um não jornalístico. É o contém jornalismo o fator de distinção entre um conteúdo qualquer e um conteúdo jornalístico.”
Nas redes se tenta definir relevância ao se forjar clamor, diz Gandour
Quando as redações ficam menores e menos conteúdo jornalístico é produzido, qual o impacto social disso?
Há uma perda da capacidade instalada do jornalismo como instância de mediação da sociedade. Isso não quer dizer que o jornalismo perdeu intensidade. Hoje, nas redes, o que mais repercute é o que é produzido pela imprensa profissional. Com a perda de capacidade de produção, em termos de volume, alguns setores podem ficar mal cobertos. A perda relativa de poder de mediação não vem só da redução da capacidade produtiva. Também vem dessa iniciativa dos governadores, propiciada pelas redes, de se comunicar diretamente e desqualificar a imprensa tradicional. Ao se deparar com uma reportagem investigativa, a atitude republicana de um governante é reconhecer aquilo como importante. Mas muitas vezes o jornalismo profissional é desqualificado nessa comunicação direta, que chamo de populismo digital.
Essa comunicação direta incentiva ataques à imprensa?
Sim. A comunicação direta como ferramental político não é novidade. No passado havia comícios, caminhadas. O que ocorre é que as redes sociais deram a esse contato direto um volume de massa, e, em paralelo, os artifícios computacionais para forjar a repercussão desse contato direto, que são robôs, disparos automáticos. Uma claque digital forjada. É uma subversão em relação ao que a imprensa faz ao definir a relevância de um assunto. No mundo digital se tenta definir relevância ao se forjar um clamor.
Há sites que tentam imitar o formato de conteúdos jornalísticos, mas sem seguir preceitos de apuração, checagem. Como o público pode diferenciá-los?
No livro, proponho uma maneira de definir jornalismo com base em atitude, método e narrativa. A atitude é a curiosidade do jornalista. O método passa por organizar o trabalho, colocar o assunto dentro de um contexto, ver como as fontes estão relacionadas. E a narrativa é a transformação disso em algo palatável e didático, de modo a contar a história de forma acessível e dando voz a todos os lados. As notícias fraudadas ou fake news se apropriam do formato sem considerar o método. Os fraudadores mimetizam o formato, tentam se apropriar da aparência, porque o jornalismo tem credibilidade. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.