Neste fim de semana tem dose dupla de Rumo em Curitiba. O grupo, que está comemorando 45 anos de sua criação com o lançamento de um documentário e um disco de canções inéditas, faz um concerto no sábado (dia 10 de agosto), às 20h, no Teatro Sesi Campus da Indústria (Av. Comendador Franco, 1431), com entradas a R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia). Na véspera (sexta, dia 9), no mesmo horário, o Centro Cultural Sistema Fiep (Rua Paula Gomes, 270) promove a exibição gratuita, de um documentário recém-lançado, sobre a trajetória iniciada em 1974, quando seus integrantes ainda eram estudantes universitários.

Tido como um dos mais revolucionários grupos brasileiros entre o final dos anos 1970 e o começo dos 1980, o Rumo fez parte da turma que ficou conhecida como “vanguarda paulistana”. Eram bandas, cantores e compositores que apostavam no humor, na irreverência e na experimentação de linguagens musicais que se reuniam em concorridas apresentações no Teatro Lira Paulistana, fundado em 1979 em um porão no bairro de Pinheiros, na capital paulista. Com o nome extraído da obra do modernista Mário de Andrade, o Lira – que posteriormente também se transformaria em selo fonográfico – juntou no mesmo caldeirão nomes como Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Rumo, Premeditando o Brque, Lingua de Trapo, Ná Ozzetti, Tetê Espíndola, Eliete Negreiros e Cida Moreira. Com a popularidade crescente do rock brasileiro, anos nos anos 1980, abrigou shows de bandas como Titãs, Ira!, Ultraje a Rigor, Violeta de Outono, Gang 90, Ratos de Porão e Cólera.

O Rumo se destacou por ser um grande coletivo criativo, com dez integrantes, entre eles diversos vocalistas e compositores. Trafegando entre o lirismo e o deboche, o humor e a seriedade, as músicas para adultos e crianças (em 1988 foi lançado o divertido álbum Quero Passear, concebido com o público infantil como alvo principal), os tradicionalismos e as experimentações de linguagens musicais dentro do amplo espectro do que há décadas concebemos como a sigla MPB, o grupo lançou sete álbuns entre 1981 e 1992, sendo o último gravado ao vivo e lançado exclusivamente no formato de CD. Também em 1992 seus integrantes se separaram em definitivo para poderem se dedicar exclusivamente às suas carreiras profissionais dentro e fora da música. Em 2004 foi feita uma breve reunião, para a concepção de um DVD extraído de um show. Agora em 2019 vem o reinício da carreira, com o lançamento do oitavo álbum, Universo, pelo selo Sesc, com 14 faixas recentes e inéditas, e alguns showsmarcados pelo país.

Apesar de contar com participações especiais em estúdio e nos palcos, o Rumo mantém a mesma formação de toda a sua carreira – com exceção da ausência da pianista Ciça Tuccori, falecida em 2003. Fazem parte do coletivo Luiz Tatit (violão e voz), Ná Ozzetti (voz e percussão), Helio Ziskind (flauta, saxofone, violão e voz), Akira Ueno (baixo e percussãoo), Paulo Tatit (guitarra, violão, baixo e voz), Pedro Mourão (violão e voz), Gal Oppido (bateria), Zecarlos Ribeiro (percussãoo) e Geraldo Leite (voz).

O Ric Mais conversou com um de seus fundadores, Luiz Tatit, sobre passado, presente e futuro do Rumo. Em um bate-papo exclusivo, ele fala sobre o passado cult, os novos tempos da internet e os dois lançamentos que serão apresentados em Curitiba.

A característica principal do Rumo é investigar as possibilidades do (fazendo um trocadilho infame agora!) rumo da canção popular. Isto sempre foi intencional ou acabou sendo um direcionamento inconsciente de vocês?

De início, tivemos um período considerável, cerca de uns cinco anos, em que buscávamos decifrar a linguagem da canção, da relação entre melodia e letra, e entender as significações específicas que só ela poderia gerar. A ideia era, a partir desse trabalho, chegar a um tipo de composição e interpretação que fizesse evoluir essa linguagem, naqueles anos (1970-1980) em que a experimentação era um valor decisivo a ser incorporado na obra artística. O nome do grupo, Rumo, reflete essa busca de evolução da linguagem.

Além de uma carreira solo após a primeira fase do Rumo você também iniciou uma bem-sucedida carreira como professor e pesquisador. Em que momentos o trabalho com o grupo convergiu com a sua trajetória acadêmica?

Até o início dos anos 1980, quando concluí meu mestrado, havia uma proximidade maior entre o que eu estudava, sozinho ou com membros do grupo, e o que produzíamos e apresentávamos na banda. A partir da gravação dos dois primeiros discos (1981), minha atividade acadêmica foi se separando do projeto cancional do Rumo. Meu envolvimento com a semiótica me levou a outra esfera de indagação teórica, ainda que eu mantivesse a canção como meu principal objeto de análise. O Rumo, por sua vez, foi adquirindo uma personalidade artística baseada nas novas composições que surgiam e numa nova concepção de arranjo e interpretação que não dependiam mais de teoria prévia. Ambas as vertentes tiveram então trajetórias paralelas e independentes.

Hoje, com a evolução tecnológica na comunicação, é mais fácil reunir uma dezena de integrantes para ensaios, shows e viagens?

Tudo é mais fácil e funcional hoje em dia, ao menos em termos de comunicação e resolução técnica das ideias musicais. Mas o ensaio propriamente dito ainda se dá de modo bastante parecido com o que fazíamos há 40 anos. Os músicos precisam se encontrar e tocar juntos o máximo possível para obter um bom espetáculo ou uma boa gravação. Há mais recursos para conduzir esses ensaios, mas sua essência é a mesma.

Quando e quem deu início a esta nova reunião do grupo?

A primeira iniciativa foi do produtor musical Márcio Arantes. Ele fez uma proposta ao Sesc-SP que previa um novo álbum do Rumo, composto só de inéditas. O Sesc topou e então o Márcio conversou com a Ná Ozzetti que, por sua vez, trouxe a ideia para todos nós e, quase imediatamente, mergulhamos no trabalho como se ele nunca tivesse sido interrompido.

O Rumo está lançando um novo álbum, Universo, feito pelo selo Sesc, que também produziu recentemente uma nova leva de todos os discos do Premê. Como você avalia este trabalho do Sesc de resgatar as propostas daquela geração do Lira Paulistana, seja em trabalhos inéditos ou discos feitos lá atrás?

Confesso que eu já imaginava que, com o passar do tempo, nosso trabalho, assim como o dos demais associados à vanguarda paulistana, seria cada vez mais valorizado. Eu já via isso acontecer entre estudantes de pós-graduação que manifestavam interesse por esse período. Passei por várias dissertações e teses que focaram esse tema e que se aprofundaram no estudo das composições, do modo de cantar, dos arranjos e mesmo dos temas criados pelos artistas dessa época. Agora esse interesse ganha corpo com o patrocínio oportuno do Sesc de São Paulo. É conhecida a sensibilidade e o pioneirismo dessa instituição paulista sempre que se trata de reconhecer o valor estético das mais variadas atividades artísticas. Tivemos sorte de fazer nossas carreiras ao lado da “carreira” do próprio Sesc Cultural. Praticamente começamos juntos nos anos 1980.

Como foi o trabalho de seleção do novo repertório? Afinal, o Rumo, além de vários integrantes, também tem muitos cantores e compositores em sua formação. Ter um longo intervalo de tempo em relação ao disco anterior ajuda a formatar um repertório consistente, como se fosse quase um “novo primeiro disco da carreira”?

Nesse ponto nós mesmos nos surpreendemos. Quase todos compuseram especialmente para o álbum. Tivemos algum trabalho para selecionar, pois havia bem mais músicas que o número de faixas previsto pelo próprio Sesc. Acabamos estendendo de 10 para 14 faixas. As demais ficaram de fora. Não há nada mais produtivo do que a encomenda. Como tínhamos prazo para entregar o repertório e já estávamos empolgados com a ideia de nos dedicarmos a músicas novas, o trabalho fluiu muito bem.

Ná Ozzetti estreia como compositora com duas faixas e você a incentivou para tal. Já estava mais do que na hora dela revelar seu lado autoral também?

Aqui há um engano. Componho em parceria com a Ná há pelo menos 25 anos. Eu já conhecia muito bem o seu potencial para fazer melodias instigantes, dessas que “pedem” letras menos convencionais. Fizemos dezenas de composições, mas depois que o Rumo já tinha interrompido suas atividades. O seu trabalho na banda tinha sido totalmente no âmbito do canto. Ela estudou profundamente a dicção de diversas cantoras consagradas, especialmente a de Carmen Miranda, e ajudou a consolidar, com muito mais recursos, o modo de cantar do Rumo. Naquele momento ela nem tinha pensado em compor. Depois, a partir dos seus discos-solo, as composições vieram naturalmente. Fizemos agora mais duas canções em parceria pensando no tratamento que elas receberiam (e receberam) no Rumo. Portanto, não há novidade em a Ná compor, mas só no fato de compor pensando no Rumo.

O tempo é um tema recorrente nas faixas de Universo. Vocês lidam com o tempo hoje de forma diferente em relação à primeira fase do grupo?

Claro que é bem diferente. Essa nova proposta, inesperada em todos os sentidos, mobilizou em nós uma reflexão sobre o tempo: a memória, a longevidade, a biografia e a própria aporia do tempo, pois ele passa, mas volta. Tanto que fizemos um novo disco de faixas inéditas como se nada tivesse acontecido nesse rápido intervalo de uns 30 anos… A grande pergunta (histórica) é se só existe presente.

A letra de “Toque o Tambor” serve como um grande manifesto da longevidade do Rumo?

“Toque o Tambor” é uma canção de hoje e para hoje. Nesse sentido, talvez expresse a atualidade do Rumo. Mas há outras canções no repertório que exploram mais a questão do tempo: “Cada Dia”, “Único Legado” e “Maldade do Tempo”.

O Rumo acaba de ganhar também um documentário sobre sua história. Qual foi sua primeira impressão ao assistir a este trabalho?

O filme sobre o Rumo superou nossas expectativas. Os diretores fizeram uma leitura da nossa trajetória que nos impactou, até porque, talvez, não fosse a leitura que nós mesmos faríamos. O contraste que eles criaram entre as animações e os personagens “reais” que dão depoimentos trouxe uma dinâmica especial ao vídeo. Além disso, conseguiram chegar a um “crescendo” na narrativa que fez da história bem humorada da banda uma saga emocionante até para nós.

Neste documentário você, mais especificamente, usa muito do humor para debochar de situações e também fazer graça de si mesmo. O humor é mesmo a melhor arma para enfrentar obstáculos e situações adversas como o Rumo sempre enfrentou durante o período em que esteve ativo pela primeira vez e lançou alguns discos?

Talvez você se refira a certa ironia (às vezes mais cômica) que aparece tanto nas canções como nos depoimentos. Acho que isso é mais reflexo de uma visão de mundo pessoal do que uma estratégia para enfrentar situações adversas.

A banda também flertou com a missão de fazer música para crianças. Vocês aceitariam novamente este desafio hoje, tendo em vista as transformações de costumes e comportamentos apresentadas pelas novas gerações infantis nascidas nestas décadas digitais do século 21?

O Rumo fez um disco infantil (Quero Passear) em 1988 que acabou influenciando os dois principais projetos nessa área de alguns de seus principais integrantes: a Palavra Cantada (do Paulo Tatit e Sandra Peres) e o trabalho do Hélio Ziskind. Na época do álbum infantil do Rumo, quem nos incitou a criar o repertório nessa linha foi o Pedro Mourão. Mas creio que foi uma tendência temporária dentro da banda, assim como nosso interesse pelos antigos (que resultou no Rumo aos Antigos). Não há plano nenhum de se fazer novo álbum para as crianças, até porque os trabalhos infantis do Paulo e do Hélio continuam a pleno vapor.

Uma parte polêmica do documentário trata da ausência do Rumo e de outros nomes contemporâneos de São Paulo nas programações das rádio e tevês dos anos 1980, apesar de carregar um grande público aos shows. Como você analisa o fato de que o advento da internet (plataformas de streaming, redes sociais) nestas duas últimas décadas beneficiou o Rumo e outros artistas eliminando os intermediários (mídia, gravadoras)?

As novas plataformas e redes sociais trouxeram um benefício inestimável aos músicos independentes de hoje que querem apresentar trabalhos menos convencionais, especialmente os que jamais seriam admitidos pelas antigas gravadoras. A reviravolta foi geral. Em vez de termos artistas e banda se adaptando às exigências dos grandes conglomerados de empresas que ditavam as regras mercadológicas do mundo do disco, hoje vemos essas poderosas empresas sendo obrigadas a se adaptar a uma nova ordem eletrônica que tornou todo o seu poderio supérfluo. Fazer um disco e difundi-lo saiu do âmbito das gravadoras. Para nós,  do Rumo que, bem ou mal, já construímos nossas carreiras pessoais, esses recursos chegaram um tanto tardiamente. Nem por isso, entretanto, deixamos de aproveitar as facilidades de hoje para impulsionar nossa produção atual e mesmo para divulgar tudo que já fizemos no passado. Desse ponto de vista, o “mundo” só melhora.

O clipe de “Bem Alto”, exibido na época no Fantástico, com uma letra que tinha como tema o suicídio, teria mais impacto hoje circulando pela internet? Afinal, há quem diga que a internet também revitalizou os videoclipes e os tornou um meio de divulgação das músicas bem mais forte do que no tempo em que existiam emissoras e programas de TV voltados ao formato.

Provavelmente. O Fantástico de hoje é menos intenso e mais diluído. É um fantástico menos extraordinário, pois se mistura a uma infinidade de outros fantásticos, mas dá oportunidade de ser visto ao longo do tempo e de ser apreciado com menos pressa. A revitalização dos vídeos indicam isso.

Como você avalia os novos fãs do Rumo, muitos dos quais nem haviam nascido quando o grupo fez o “show de despedida” em 1992?

Há os que são filhos e netos dos antigos fãs do Rumo e que, portanto, já nasceram com os discos tocando na casa. Não são muitos, mas volta e meia deparamos com esses casos. Mais interessantes me parecem os novos cancionistas que descobrem o Rumo por indicações ou pela internet e se identificam com o trabalho a ponto de nos procurar para entender melhor o projeto. Isso tende a aumentar justamente em função das facilidades eletrônicas.

Você acha possível surgir uma nova safra com propostas musicais ousadas, inovadoras e inteligentes como foi aquela turma do Lira Paulistana?

Essas propostas ousadas e inovadoras nunca deixaram de existir. O que nunca mais teremos é a concentração da música em algumas poucas gravadoras e em veículos específicos como o rádio e a televisão. Esse mundo artístico “fechado” teve o seu auge no final dos anos 1960 e se estendeu até a década de 1980. É conhecida a luta histórica dos artistas para conseguirem um espaço no interior desse mundo. Quando conseguiam, estavam feitos. O país inteiro os reconhecia. Se não conseguissem, como a maioria esmagadora, tinham que mudar de profissão e tentar sobreviver de outro jeito. Nesse novo século, não há mais essa concentração. A vantagem é que o campo está teoricamente aberto para todos. Só não faz o seu próprio disco quem não quiser. A desvantagem é que “todos” agora têm um disco ou uma música para mostrar e a concorrência aumenta exponencialmente. A pergunta talvez seja: sobrou alguém para ouvir toda essa produção? Claro que exagero aqui uma tendência, mas não podemos negar que aos poucos caminhamos para isso. De todo modo, confesso que prefiro viver nesse mundo dispersivo, mas com mais oportunidades, a voltar para uma época em que só podíamos apreciar os eleitos. Hoje as propostas interessantes estão por aí, basta procurá-las.

O Rumo sempre se vangloriou de ser um grupo amador no sentido literal do termo, de fazer música por amar a música e sem preocupações financeiras em torno dela ou perspectivas de sobreviver com uma carreira profissional nesta área como grupo. Esta foi a melhor decisão nestes 45 anos de carreira? Isto também facilitou a manutenção da mesma extensa formação por tão longo tempo?

Nosso paradoxo de base sempre foi este: não podíamos nos dedicar inteiramente ao Rumo, pois tínhamos que exercer atividades paralelas que garantiam nossa sobrevivência. Por outro lado, só pudemos nos dedicar ao Rumo durante 18 anos porque exercíamos atividades paralelas que garantiam nossa sobrevivência… Na verdade, o rendimento financeiro precisaria ser muito alto para assegurar nossa dedicação exclusiva ao Rumo: éramos dez. O que nos restava, portanto, era oferecer algumas horas da semana para essa atividade musical que nos parecia importante. Pessoalmente, não acho que devemos lamentar o fato de ter sido assim e não de outro jeito. Aliás, penso que essa questão nem deveria ser colocada, uma vez que ninguém pode controlar plenamente os itinerários da vida. Tendo a crer que o interessante do Rumo, além das suas criações artísticas específicas, foi justamente o fato de ter realizado o que realizou em dezoito anos, ter interrompido suas atividades por quase trinta anos e agora ainda criar um álbum totalmente novo, com os mesmos integrantes. E, claro, já deixar esboçado um novo disco para daqui a trinta anos!

6 ago 2019, às 00h00.
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