O coronavírus nos mantendo em casa

Vida Familiar

por Clarice Ebert
Publicado em 14 mar 2020, às 00h00. Atualizado em: 4 jun 2020 às 14h51.

O poder do coronavírus

A imposição do coronavírus nos mantendo em casa cuidando dos nossos, surge ao advento de um vírus que ameaça a vida e nos apruma para as questões básicas e importantes. Diante dessa ameaça algumas medidas rápidas e inegociáveis são propostas. Especialistas do mundo inteiro advertem para os cuidados com a higiene, como medidas de contenção na disseminação do vírus. Também recomendam que as pessoas que se encontram no exterior retornem aos seus países de origem e aquelas que pretendiam viajar cancelem seus planos. Para os eventos, sejam shows, jogos, feiras, congressos, cultos ou missas, recomenda-se cancelar ou reagendar, evitando assim aglomerações disseminadoras do vírus.

Uma orientação imperativa

Independente das agendas de cada um, para todos impera a orientação de que permaneçam em casa e que cada um cuide dos seus. Assim, o coronavírus nos mantendo em casa cuidando dos nossos, tem um poder de intervir nas rotinas da vida no planeta.  Até mesmo nos círculos familiares, orienta-se que os cuidados aos filhos devam ser restritos aos pais, não deixando as crianças com os avós, visto que os idosos estão dentro do grupo de risco. Sim, parece mesmo que o coronavírus nos mantendo em casa cuidando dos nossos, nos convoca ao que é básico e importante.

Permanecer em casa

Estar no mundo e voltar para casa é uma necessidade básica, não apenas diante da ameça da vida pelo coronavírus. É humano precisar de um lugar de pertencimento. Esse lugar se chama nossa casa. Simbolicamente “nossa casa” vai muito além de um lugar físico com teto e paredes. Representa o afeto da nossa família, em que o “teto e as paredes” são o abrigo da alma que acolhe, inclui, ama, aceita e cuida. No ritmo normal da vida, é possível nos perdermos desse aconchego familiar. Em ritmos frenéticos podemos correr alucinadamente atrás de dinheiro, fama, poder e sucesso. Nem se percebe o quanto isso afasta do que realmente é básico e importante. Permanecer em casa, ou seja, em família, já parece sem graça para uma sociedade que se nutre do espetáculo das representações teatralizadas de uma vida que se deseja, mas que raramente se alcança. Dessa forma, o coronavírus nos mantendo em casa cuidando dos nossos, pode ser uma contingência com inúmeros aprendizados.

Peregrinos precisando voltar para casa

As variadas distrações, seja como produtores de consumo ou como consumidores do que é produzido, nos transformam em peregrinos precisando voltar para casa. Além do conceito simbólico de “casa” representar a nossa família, também pode sinalizar quem somos, ou seja, a nossa interioridade. Envolvidos em espetáculos que consomem de tudo, desde sexo à religião, podemos nos distanciar da casa interna. Como sabiamente disse Brennan Manning

“Passaram a ser estranhos de si mesmos, gente com endereço, mas nunca em casa”.

Esse conceito nos instiga a pensar em voltar e permanecer em casa, seja para nós mesmos, como para as pessoas mais significativas da nossa vida, que são as pessoas da nossa família. Não significa que não podemos sair para outros lugares e nações, mas basicamente significa que, não importa o que nos acontecer ou por onde peregrinarmos, são as pessoas da nossa família que nos fazem pertencer e nos acolherão em tempos difíceis, por isso as valorizamos. Diante dessa perspectiva, o coronavírus nos mantendo em casa cuidando dos nossos, parece ser uma convocação subjetiva para esse retorno.

Cuidando dos nossos

O “voltar para casa e cuidar dos nossos” parece, cada vez mais, ser uma necessidade humana dessa era. Atualmente a sociedade se encontra arrastada por narcisismos, hedonismos, materialismos, individualismos e relativismos. Assim, acabou se tornando dependente de espetáculos para obter experiências de felicidade e mesmo do sentido da vida. No entanto, o que vem de fora, é temporário e passageiro, não alcança as necessidades mais profundas. Voltar para casa é voltar para si e para os seus, o que envolve cuidados. O cuidado de si promove um estar em casa, num apaziguamento interno sem espetáculos externos. Implica também a conexão com o transcendente e uma harmonização da mente com a alma e o espírito. Essa harmonização favorece o “permanecer em casa e cuidar dos nossos”.

Cuidando da comunidade humana

Numa amplitude do conceito “cuidando dos nossos” podemos dizer que é um cuidado que se estende para comunidade humana como um todo. Nesse sentido, é fato que urge a conscientização do cuidado e da preservação da vida no planeta. Basicamente é parar de explorar o meio ambiente da forma como se tem feito e encontrar formas mais éticas para se viver em sociedade. Devemos voltar a nos ocupar mais em construir a cooperação e a confiança, para reaver a empatia e a solidariedade na convivência humana. No entanto, esse cuidado ampliado dificilmente acontecerá se não aprendermos a lição de que para se cuidar do sistema macro não se pode desconsiderar o micro. O micro tem a ver com o nosso restrito ambiente familiar.

Cuidando dos nossos ficaremos mais atentos ao que fazemos, como nos movemos, cremos, coabitamos, relacionamos, consumimos e interagimos uns com os outros, com a sociedade, com o meio ambiente e com o mundo.

O coronavírus nos mantendo em casa e cuidando dos nossos, parece até mesmo atender a um clamor do planeta.

O básico e importante

O poder do coronavírus de nos manter em casa cuidando dos nossos, é uma contingência imposta por um vírus poderoso que ameaça a vida. No entanto, pode não ser somente isso, pois, mesmo que pareça não ter nada a ver com algo mais subjetivo, a subjetividade se mostra à flor da pele quando a vida está ameaçada. Talvez possamos aprender algo dessa situação, para muito além dos cuidados com a higiene.

O poder do coronavírus de nos manter em casa cuidando dos nossos nos impulsiona a um movimento forçado, numa percepção sobre o que é básico e realmente importante diante da ameaça da vida.

Permanecendo em casa cuidando dos nossos

O coronavírus nos mantendo em casa cuidando dos nossos, parece gerar um movimento difícil e doloroso, que limita o direito de ir e vir, de consumir e produzir, mas que é imperativo se quisermos reter a expansão do vírus. Da mesma forma, permanecer em casa cuidando dos nossos, talvez não seja apenas uma contingência pontual para nos protegermos do coronavírus. Que seja também uma postura assumida para nos proteger de um outro vírus, daquele que corrói a solidariedade, tanto na vida familiar como na comunidade humana. Quem sabe, assim, logo mais, após a contenção do surto viral, teremos aprendido, não somente a não surtar em meio às ameaças de contágio, mas também a elaboramos uma melhor harmonização interna e com os demais.

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