Com a repercussão do caso de estupro coletivo, a sociedade discuta o que seria eficaz contra esse tipo de crime no país. O texto é da revista AzMina
E o desalento deu lugar à raiva. Nos últimos dias, os números do estupro no Brasil têm nos mostrado que o crime, por aqui, é cercado de impunidade e destruição da vida e da reputação das vítimas. Ao ver a moça que denunciou um estupro por 33 homens ter sua vida pessoal desolada, muitos se sentem inclinados a apoiar o armamento de mulheres, a castração química de estupradores e o retorno das aulas de moralidade nas escolas. Mas será que isso resolveria o problema?
A americana Regis Giles está tão convencida de que sim que topou se tornar o rosto dessa ideologia. Atiradora eficiente desde os 9 anos de idade, ela milita, nos Estados Unidos, para que mulheres não só tenham porte de armas como recebam treinamento para usá-las para autodefesa. A jovem tem dado entrevistas aos maiores veículos de comunicação do mundo e lidera o blog “Girls Just Wanna Have Guns” (Garotas só Desejam uma Arma, em tradução livre).
“Eu acredito que dar às mulheres uma chance de se defender é melhor do que não dar chance nenhuma. Claro que aprender a atirar e lutar não garante que você não será estuprada, mas certamente melhora suas chances de sobreviver a essa violência”, opina ela. “Aulas de defesa pessoal corpo a corpo deveriam ser ensinadas o mais cedo possível às crianças. Eu comecei a treinar jiu-jitsu aos 9 anos e gostaria muito de ter começado ainda mais cedo!”
A ideologia de Regis, em tese, seria aplicável no Brasil. Aqui o porte de armas é permitido perante autorização, para cidadãos com mais de 25 anos, registro do armamento na Polícia Federal, sem antecedentes criminais, comprovação de habilidade técnica e psicológica e que alegue ameaça à sua integridade física – no caso, o risco de estupro pode ser um argumento válido. Segundo Lívia Magalhães, diretora da Comissão de Direitos Humanos da OAB/DF, se uma mulher matar um potencial agressor para se livrar do estupro, o assassinato seria considerado legítima defesa.
Mas a pergunta que fica no ar é: será que o porte de armas é mesmo desejável para as mulheres?
O problema é de autodefesa?
Especialistas brasileiros consultados pela Revista AzMina vêem as ideias da atiradora com receio e alegam que o contexto brasileiro têm complicadores psicológicos que dificultam a autodefesa: 70% dos estupros por aqui são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima. “O que acontece no Brasil é que as mulheres são treinadas a vida toda para achar que a culpa da violência sexual é delas”, afirma a antropóloga Adriana Dias Higa, doutoranda da Unicamp e coordenadora do Comitê de Deficiência da Associação Brasileira de Antropologia. “Acho mais provável – e perigoso – que vítimas de estupro usem essas armas para cometer suicídio do que se defender de um estuprador com quem têm laços afetivos.”
O advogado e professor da Universidade Mackenzie Edson Knippel, que atendeu mulheres vítimas de violência no Escritório Modelo da PUC, também é cético quanto ao armamento feminino. “Muitas nem teriam coragem de puxar o gatilho. Se a vítima nasce num ambiente violento, com abuso e agressão, assimila esse comportamento como natural. Pode ser até mesmo que sequer compreenda que é vítima”, argumenta.
Nos Estados Unidos mesmo, em que o direito ao porte de arma é protegido pela Constituição, ocorre um estupro a cada dois minutos, segundo o RAINN, maior instituto de estudo e prevenção de estupro do país. De acordo com o mesmo órgão, 68% dos casos não são reportados. O número total de agressões sexuais cresceu de 207 mil em 2005 para 284 mil em 2014 (levantamento mais recente) – ou seja, as armas não estão impulsionando queda nas ocorrências.
Apesar do uso de armas de fogo ser bem menos popular por aqui, o 9º Anuário Brasileiro da Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra que ocorrem menos estupros: um a cada 11 minutos, com 70% não sendo reportados (uma taxa similar à americana). A analogia continua válida quando observamos a diferença populacional, já que se trata de cinco vezes mais estupros nos EUA, sendo que a população não chega ao dobro da brasileira. E vale lembrar que, por lá, 56% dos crimes sexuais são cometidos por estranhos, o que torna bem mais fácil reagir com arma.
O alto índice de silêncio das vítimas, em ambos os países, têm sido interpretado por psicólogos e juristas, por muitos anos, como um indício de que o gargalo não está na autodefesa, mas na capacidade de se reconhecer enquanto vítima e fazer a denúncia. Como não são denunciados, estupradores se valem do clima de impunidade. Esse clima não viria somente de falha no sistema judicial, mas também cultura que estimula o silêncio e culpa as vítimas pela violência sofrida.
Existe um discurso socialmente construído e incutido nas mulheres desde muito crianças de que se elas foram vítimas de agressão sexual é porque, de alguma forma, “estavam pedindo”- seja por serem sensuais demais, usarem roupas curtas ou até andarem sozinhas em locais inapropriados para “moças de família”. Esse mesmo discurso tende a justificar o estuprador, dizendo que ele, como é “macho”, não pôde controlar seus “instintos naturais”. É isso que chamamos de cultura do estupro. E é por isso que tão mais mulheres do que homens cometem estupros em nosso país.
“Como a gente chegou neste estado tão absurdo? Porque há um relativismo: o estupro é uma coisa ruim, mas parece que ele nunca acontece. Nós minimizamos a culpa do estuprador e aumentamos a culpa a vítima”, diz Adriana. “O estupro é a única forma de violência que, em vez de perguntar a história do agressores, a gente pergunta a história da vítima”, completa.
Lelah Monteiro é duplamente especialista em como opera o cérebro das pessoas durante uma situação de estupro. Além de sexóloga há 24 anos com enfoque em acompanhamento de mulheres que sofreram violência sexual, ela foi vítima de estupro três vezes. Um de seus namorados sugeriu que ela se armasse para se defender, mas ela se recusou. “Uma coisa é você fazer uma aula de defesa pessoal, em que você está concentrada naquilo. Outra é o momento do ataque. O efeito surpresa altera seu estado mental para usar uma arma”, explica. “O mais recomendado é, mesmo, gritar por socorro, usar as unhas e os dentes e atacar as parte íntimas do agressor.”
É preciso lembrar, ainda, que 70% das vítimas de estupro no Brasil, por serem menores de idade, não poderiam – nem deveriam – ter porte de arma. O dado é do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan).
Será que a moralização é moral?
A volta das aulas de Educação Moral e Cívica ou ainda de aulas de Religião nas escolas é uma sugestão que tem se espalhado muito pelas redes sociais ultimamente. Essa linha de pensamento defende que a moralização do comportamento sexual dos indivíduos, com mulheres se vestindo de maneira mais casta e homens e mulheres se “guardando” para o casamento, resolveria o problema.
Para descobrir se isso seria eficiente, a antropóloga Adriana Dias conduziu uma investigação pessoal. Debruçou-se sobre o caso dos 33 e, rapidamente, descobriu o perfil de 14 deles nas redes sociais.
“Adivinhe: todos os que encontrei eram evangélicos de diversas denominações”, revela.
“Tentei transmitir minha descoberta ao delegado responsável pelo caso diversas vezes, mas ele nunca me respondeu e chegou a bloquear meus e-mails.”
Segundo a especialista, que estuda como a narrativa religiosa ajuda a encobrir escândalos, evangélicos fundamentalistas do Rio de Janeiro e da política brasileira têm se esforçado historicamente para encobrir casos do tipo com o objetivo de espalhar o discurso de que “mulheres direitas não são estupradas”. Veja bem, ela fala de fundamentalistas, e não de todos os evangélicos do Brasil.
“Os evangélicos radicais têm todo o interesse em desconstruir a imagem da vítima neste momento (alegando que ela era imoral e “devassa”) porque isso, teoricamente, fortaleceria o argumento de que estudo religioso é necessário nas escolas e provaria que eles sabem resolver problemas melhor que o pessoal dos Direitos Humanos”, explica Adriana. “No entanto, se esse tipo de moralização fosse eficiente, o que explicaria que todos os homens que encontrei envolvidos no caso se autodeclaram evangélicos?”
A especialista chama a atenção para o fato de que os mesmos evangélicos que defendem o endurecimento da lei do estupro no Congresso, como Eduardo Cunha, Marcos Feliciano e Jair Bolsonaro, também são os primeiros a usar argumentos de culpabilização das vítimas do estupro e lutar para que ela seja obrigada a ter o filho do estuprador. Neste momento, por exemplo, há um projeto de lei que busca dificultar o acesso legal, seguro e gratuito à interrupção da gravidez para vítimas do estupro e sugere pena de cadeia a quem auxiliar ou informar a vítima sobre esse direito. O autor? Cunha.
Castração química
Outro na lista dos mais citados para resolver o estupro no Brasil é a castração química. Ela consiste em uma forma temporária de castração com uso de medicamentos hormonais que reduzem a libido. Não ocorre a remoção dos testículos e a pessoa continua fértil, mas sem conseguir ter uma ereção. No Brasil, essa prática só é permitida com autorização do agressor.
Segundo estudos desenvolvidos na Universidade de Brasília (UnB), mesmo em casos de transtornos mentais como a pedofilia, 90% dos agressores respondem bem a tratamento psicossocial e apenas 10% respondem apenas com auxílio de medicamentos hormonais de controle da testosterona. Mesmo nestes casos é recomendada a terapia.
O último país a aprovar a prática foi a Indonésia, que assinou, há uma semana, uma legislação em que só se enquadram abusadores de crianças. Austrália, Rússia, Coreia do Sul e EUA também usam o método.
A medida, no entanto, não é completamente eficaz e um estudo conduzido na Alemanha nos anos 1960 mostrou que 18% dos agressores continuam com performance sexual normal apesar dos hormônios. Defender essa medida pode ainda ser arriscado no campo da argumentação: afinal, admitir que o problema é hormonal, e não uma questão de educação e caráter, pode fornecer argumentos para quem afirma que “o homem não pode resistir a seus instintos naturais”.
“Além disso, a castração pode até impedir a ereção dos agressores, mas eles continuam tendo acesso a outros objetos que podem inserir nas vítimas se continuarem com comportamento sexual agressivo”, explica Lelah. “Somente em casos em que há uma alteração no cérebro, condutas irreversíveis mesmo, acredito que seja necessária uma medicalização mais forte que beire a castração química, mas vale lembrar que esses casos são a minoria. E a castração química é o último recurso.”
Soluções possíveis
A solução mais eficiente, segundo a maioria dos especialistas ouvidos por nós é, infelizmente, também a rota mais longa: educar as crianças para que tenham uma ética do desejo. Isso não significa castrar o comportamento sexual ou a vestimenta de meninas com medidas moralizantes e machistas, mas ensinar a meninos e meninas que seu desejo deve respeitar, sempre, a vontade do outro.
Outra medida importante é treinar delegados e policiais para fazerem um bom acolhimento das vítimas. De acordo com Edson, é muito comum que as vítimas desistam da denúncia assim que são maltratadas na delegacia. “Já existe vergonha, constrangimento, receio, medo de chegar na delegacia. Se lá for mal atendida, não vai querer dar sequência. Lembro mulheres que me procuraram depois de um mal atendimento e foi muito difícil convencê-las a seguir em frente”, revela.
Para Lívia, a maioria dos casos de estupro não é fruto de problemas de segurança pública, mas de uma cultura machista que prega um poder do homem sobre a mulher, e celebra a subjugação feminina. “Enquanto esse paradigma não for quebrado o número de estupros não irá diminuir. Infelizmente está comprovado que as pessoas não deixam de cometer um crime pelo medo da sanção. O crime é cometido e, no caso de estupro, o criminoso sabe que a vítima quase nunca registra a ocorrência.”
Ela explica que o crime de estupro tem uma característica: a cifra negra.
A expressão “cifra negra” significa que um número muito pequeno de ocorrências de um determinado crime chega ao conhecimento das autoridades. Deste já pequeno número, uma ínfima parcela chega ao conhecimento do judiciário, e uma menor ainda resulta em condenações.
E se as vítimas nem chegarem a denunciar, como vamos conseguir punir os agressores?
“O Brasil vive um momento de injustiça sólida que está provocando uma exaltação social da Lei do Talião (olho por olho, dente por dente). Mas temos que reagir a esse impulso”, defende a antropóloga Adriana. “Esse tipo de regra só resolve em estado não civilizatório. Qualquer estado organizado precisa de instituições e Justiça sólidas.”
*Este texto foi escrito por Nana Queiroz e publicado originalmente na Revista AzMina. Nana é autora do livro “Presos que Menstruam” e roteirista do filme de mesmo nome que está em produção. Ela também é colunista do Brasil Post e criadora do protesto Eu Não Mereço Ser Estuprada. Entrou nas listas de mulheres mais destacadas de 2014 do UOL, Brasil Post e do think tank feminista Think Olga. Como jornalista, trabalhou nas revistas Época, Galileu, Criativa e Veja, além dos jornais Correio Braziliense e Metro. No ativismo, foi media campaigner da Avaaz. É bacharel em jornalismo pela USP e especialista em Relações Internacionais pela UnB.