Crianças não são miniadultos!

Vida Familiar

por Clarice Ebert
Psicóloga (CRP08/14038) e Terapeuta Familiar
Publicado em 11 out 2020, às 12h25. Atualizado às 14h50.

A infância após o paraíso do útero materno

O ventre materno pode ser utilizado como uma excelente metáfora a respeito do que poderia ser um paraíso. Esse lugar aconchegante de cuidados plenos, onde nada falta e nada se precisa fazer para obter o suprimento das necessidades e desejos. Após a “expulsão” desse paraíso, se apresentam inúmeros desafios, que iniciam com a transição do paraíso para o mundo externo e em descobertas de que agora é preciso respirar e sugar para sobreviver. Nessa inserção ao mundo novo, apesar dos desafios, inicia-se uma das mais lindas e belas fases da vida, a infância. Essa fase dourada das fantasias e fascinações, em descobertas do mundo novo para além do paraíso do útero materno, certamente não é o mundo adulto, e quem a vive não é um miniadulto.

Crianças não são miniadultos

Nem sempre a infância foi reconhecida. Somente após o advento da ciência, que passamos e entender que crianças não são miniadultos, mas se encontram num estágio evolutivo diferenciado de outros estágios da vida humana. A infância compõe, segundo a Organização Mundial da Saúde, a faixa etária dos zero aos dez/doze anos de idade. Nesse período etário as crianças passam por adaptações evolutivas específicas, que precisam ser reconhecidas como indispensáveis para um desenvolvimento humano satisfatório. O desenvolvimento infantil não ocorre por mero acaso, mas depende da sua interação com o meio, de acordo com sua faixa etária (1). O período etário da infância é um marco específico do ciclo vital familiar, no qual ocorre uma evolução dinâmica da família com a chegada dos filhos.  

No primeiro ano e meio de vida

Nesse período, as crianças dependem dos pais para tudo, desde a alimentação, afeto e proteção, e por isso precisarão confiar inteiramente neles para a provisão de suas necessidades básicas. Se supridas satisfatoriamente, contribuirá para estabelecer uma relação de segurança, conforto e confiança também com outras pessoas. Esse período é o importante momento da inclusão e a família deve se reorganizar para essa tarefa. O casal deve assumir o papel parental, adaptando sua unidade conjugal para dar espaço aos filhos que chegam, ao mesmo tempo em que deve preservar o seu papel conjugal.

Após os dezoito meses até os três anos

Nesse período, as crianças dão um grande salto em seu desenvolvimento. Ocorre o desmame e aprende a andar, falar e ir ao banheiro. Com isso conquista alguma autonomia e ganha autoconfiança. Agora com algum domínio sobre o ambiente, segue rumo a toda exploração possível e com a aquisição da linguagem, mesmo precária, aumenta sua interação com o ambiente, comunicando-se verbalmente. Porém se for humilhado, desprezado, poderá não desenvolver boa autoestima e passar a duvidar da própria capacidade (2). A vida familiar com a presença desse explorador, em todo o seu tempo acordado, terá que se adaptar para cuidados especiais. As janelas precisarão de telas e os materiais de limpeza, os perfumes e os objetos cortantes não poderão ficar ao seu alcance. Ao mesmo tempo em que os membros familiares toleram algumas baguncinhas pela casa, algumas regras ajudarão a criança a se organizar e se sentir segura. Dessa forma também saberá se comportar quando estiver fora de casa e assim minimizar as experiências de vergonha que nessa fase são extremamente perniciosas. Os pais entrarão em contato com um mercado de brinquedos altamente estimulante e consumista, e será preciso aprender que a criança precisa mais do seu afeto e amor presencial do que de muitas coisas. Brincar de rolar no chão, por exemplo, pode ser muito divertido e mais significativo do que deixar a criança sozinha com um tablet ou celular na mão.

Dos três aos seis anos

Nesse período, as crianças alcançam a expansão da linguagem e o controle dos movimentos corporais. Aumentam a sua curiosidade e passam a ter iniciativa em conhecer e experimentar o novo. Através do brincar conhecem e explicam o seu mundo. Começam a interagir mais intensamente com brincadeiras junto com outras crianças. Nessa interação surge a culpa que decorre dos conflitos, em que descobrem o seu desejo contraposto ao desejo do outro, e que a existência do não é também uma realidade nas interações sociais. Segundo Erikson (3), a criança saudável aprende a imaginar, a brincar no mundo do faz-de-conta e da fantasia, a cooperar com os outros, a dar e receber ordens. Os pais devem estabelecer controle que permita espaço para avançar e ao mesmo tempo garanta segurança e autoridade parental. É tarefa dos pais estimularem seu filho a imaginar, aprender e cooperar em acordo com as regras estabelecidas para toda a família.

Dos seis até os doze anos

Dos seis anos em diante, as crianças adquirem noções básicas para a vida em sociedade, como relacionar-se em grupo de acordo com as regras sociais, brincar em grupo de forma organizada, seguindo regras, ir à escola, aprender matemática, leitura e estudos sociais. Vão desenvolvendo habilidades como ler, escrever, jogar, calcular, nadar e andar de bicicleta. A criança saudável gosta de conquistar novas habilidades e conhecimentos e de dominá-los. Para Erikson (4), pais e escolas que incentivam e estimulam, ajudam a evitar o fracasso pessoal e o sentimento de inferioridade.  A socialização que já vinha acontecendo em certa medida, nessa fase aumentará. Novamente os pais são os principais agentes nesse processo, em que a criança desenvolve o sentido de pertencimento juntamente com a separação. A criança aprende a se relacionar com grupos extrafamiliares, inserindo-se no meio que a rodeia e ao qual também pertence. Aos pais pertence a tarefa de avaliar se o meio é ou não seguro e assumir a responsabilidade de monitorar a socialização de seus filhos.

Reconhecendo a infância na contemporaneidade

Acompanhar as crianças na fase evolutiva denominada infância significa respeitar a evolução gradativa que cada fase do desenvolvimento humano exige. Caso contrário corremos o risco de retornar a percepção de que as crianças são miniadultos, conforme se tinha na Idade Média. Retornamos a essa percepção na contemporaneidade quando adultizamos nossas crianças. Para que as crianças possam dar conta de crescer e se desenvolver satisfatoriamente é necessário liberar as crianças das tarefas de adultos.

As tarefas de adultos

São tarefas específicas que devem ser assumidas pelos adultos da casa e não pelas crianças. Por exemplo, é dos adultos a tarefa de: (a) monitorar o clima emocional da casa, desenvolvendo uma fala assertiva – não violenta – e uma escuta empática; (b) monitorar as irritações, desenvolvendo autocontrole emocional; (c) instruir as regras, as rotinas e as dinâmicas familiares, como refeições, sono, passeios, direitos e deveres; (d) promover a educação para a vida, ajudando os filhos no desenvolvimento gradativo da independência e na aquisição da autonomia. Quando os adultos transferem essas tarefas para as crianças, a família sofre uma inversão nos papéis de seus membros e sobrecarrega as crianças com tarefas que não são suas, podendo prejudicar o seu desenvolvimento.

VAMOS DEIXAR NOSSAS CRIANÇAS VIVER A INFÂNCIA!


  • ERIKSON, Erik. O ciclo de vida completo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
  • Idem.
  • Idem.
  • Idem.